Ao contrário do que pensam muitos dos críticos da modernidade, vivemos hoje numa era pós-materialista. O materialismo, levado às suas últimas consequências, transformou-se no seu inverso: quando tudo é encarado como “matéria”, o próprio sujeito passa a conceber-se a si mesmo como uma espécie de identidade pura e imaterial que tem por função cósmica determinar livremente todas as coisas. Não me parece possível compreender o transumanismo e o transgenerismo, enquanto fenômenos antropológicos, sem que antes se compreenda a natureza do demiurgismo pós-materialista que lhes serve de fundamento.
Essa antropologia pós-materialista se baseia num distanciamento radical entre a subjetividade e todos os fenômenos que a cercam, inclusive — e sobretudo — o próprio corpo. Este já não é mais visto como um aspecto inerente à natureza humana, mas como um outro, uma externalidade que já não possui qualquer vínculo essencial com o eu. O homem, segundo esse modo de ver as coisas, não passaria de um eu desmaterializado vestido com trajes de carne.1 Não é necessário dizer que a alienação causada por esse distanciamento é uma grande causa de sofrimento, e que as pessoas que passam por isso não devem ser culpabilizadas. Ao contrário, devemos nos compadecer delas e acolhê-las com amor.
Certamente essa tendência alienante foi acelerada com o advento da internet.2 A ideia de uma identidade virtual naturalmente se estendeu à vida cotidiana. Seria de se admirar se o fato de passarmos muitas horas diárias em um mundo virtual não nos desmaterializasse nem um pouquinho no restante do dia. É visível o fato de carregarmos para a vida concreta os hábitos da nossa vida virtual: da mesma forma que customizamos nossos avatares e criamos imagens modificadas de nós mesmos com ferramentas de inteligência artificial, assim também customizamos os nossos corpos com rinoplastias, harmonizações faciais, próteses de silicone, tratamentos hormonais, cabelos coloridos, e assim por diante. O corpo é uma espécie de argila nas mãos do oleiro, e não há limites para a sua determinação. O Ken Humano é o paradigma da era pós-materialista; o enfant-prothèse, de que falava Jean Baudrillard, tornou-se onipresente.3 A negação das diferenças entre humano e não-humano,4 uma consequência inevitável desse pós-materialismo, não pôde senão culminar numa total indiferença. Somos todos homens-prótese, andróginos, ciborgues, demiurgos. Nossa demiurgia ciborgue revela uma indiferença radical.
Os mais familiarizados com a história das religiões reconhecerão prontamente as raízes gnosticistas desse pós-materialismo. Este não se trata, porém, de um gnosticismo doutrinal, e muito menos de uma doutrina que nasce com uma roupagem religiosa, particularmente cristã. O gnosticismo dos nossos tempos não é sequer uma ideologia. É, antes, um modo de conceber o homem na sua relação com o mundo, modo este que não se restringe a quaisquer limites confessionais e não possui uma expressão doutrinal uniforme.
Vemos o pós-materialismo em fenômenos muito diversos, sem conexão ideológica evidente. O vemos com clareza na esquerda liberal (woke) e na sua defesa do transgenerismo, mas também o vemos no culto do corpo e das cirurgias plásticas, que pervade todo o espectro político. Esse culto, que num primeiro momento parece uma expressão do velho materialismo, revela sua verdadeira faceta quando o examinamos mais de perto: o corpo em seu estado atual não é um valor em si mesmo, ele é como uma pedra de mármore que precisa ser esculpida, o barro que serve ao trabalho do oleiro. O motor desse culto não é o corpo, mas a sua modificação. E enquanto não há limites para esse processo de modificação, o corpo é tomado como máxima indeterminação. A máxima indeterminação do corpo corresponde aqui a uma máxima determinação do agente que atua sobre ele, o qual, por sua vez, não é concebido como agente corpóreo, mas como o demiurgo pós-materialista.
Podemos ver esse fenômeno também, e sobretudo, nos meios ocultistas/new age e tradicionalistas. Não é incomum encontrar guenonianos e schuonianos totalmente apartados de seus próprios corpos e, não obstante, com mil e uma justificações metafísicas para a sua alienação. A autoidentificação com o “Ātma Supremo”, em vez de fazê-los conquistar novas dimensões do seu próprio ser, os desumaniza sem lhes dar nada em troca. Com efeito, frequentemente aquilo que parece ser uma “autoidentificação com o Ātma” é, na verdade, pura blasfêmia: projetamos no fundamento da realidade as limitações que são próprias da nossa individualidade concreta. O “Eu sou o Ātma” só não é blasfemo se esse “Eu” estiver absolutamente livre dos condicionamentos da nossa individualidade.5 Acontece que, quando usamos a palavra “eu”, estamos precisamente nos referindo a algo em particular, a algo condicionado; a não ser, é claro, que já sejamos santos, e que Deus nos tenha permitido experimentar diretamente a sua própria identidade — o que, digo com tranquilidade, não é o caso dos tradicionalistas que conheço. Essa desumanização “tradicional” é, portanto, uma paródia da santidade que com frequência gera aqueles que o próprio René Guénon chamava de awliyā ash-Shaytān (santos de Satã).
A própria crença reencarnacionista, em sua formulação Kardecista, que é tão presente no Brasil, tem como base essa antropologia pós-materialista. O corpo é visto pelos reencarnacionistas como uma espécie de vestimenta que pode ser simplesmente trocada. Não há, segundo essa concepção, qualquer vínculo essencial entre o “espírito” e o corpo.
Não é necessário dizer que as consequências cristológicas dessa crença são terríveis. A Encarnação, segundo esse modo de ver as coisas, não poderia passar de um acidente em relação ao Verbo, e o corpo de Cristo seria uma de muitas manifestações possíveis dEle. Trata-se de um Verbo desumanizado, o qual não pode coincidir de maneira alguma com a concepção cristológica ortodoxa.6
Nós somos os nossos corpos. Essa frase certamente agride a sensibilidade de muitos metafísicos, e isso não é completamente sem razão. De fato, nosso ser não é redutível à corporeidade. É correto, portanto, dizer que, embora sejamos nossos corpos, não somos apenas corpos. Não somos apenas corpos, e, não obstante, somos nossos corpos. A constatação de que em nós há algo que transcende a dimensão corpórea não nos deve levar à renúncia do corpo, mas antes à sua reconquista. O corpo separado daquilo que o fundamenta é, ou mera abstração, ou um cadáver. O pós-materialismo, enquanto mata o corpo pela sua abstração, é também um cadaverismo. O corpo vivo é certamente mais do que corpo.
Uma das inconveniências do pensamento abstrato é a tomada de uma distinção lógica como se fosse uma separação real. Peso e extensão certamente se distinguem logicamente, mas experimente conceber um peso que não corresponda a nenhum objeto extenso. Na realidade, i.e. in rem, peso e extensão estão unidos de modo inseparável. O mesmo ocorre quando consideramos a realidade de um ente tal como o homem. Encontramos nele a distinção, por exemplo, entre corpo e alma; contudo, essa distinção, que nos permite tratar abstrativamente dessas duas realidades com muita facilidade, não se traduz numa real separação. O erro de separar aquilo que na realidade está junto corresponde à morte. Essa dissecação operada pela razão humana nos sepulta ainda em vida, e não se trata de um sepultamento espiritual, como aquele de que falam os monges, mas precisamente de sua paródia.
Podemos, partindo do que acabo de dizer, encarar os fenômenos pós-materialistas como um protesto do corpo contra a razão, que o ameaça de morte. Não é de se espantar que esse protesto contra a razão tome uma forma irracional, tampouco é de se admirar que nesse mesmo gesto o corpo revele com translucidez sua causa mortis. O homem-prótese é filho da dissecação. Sua condição de possibilidade é uma separação indevida entre corpo e alma. Sem o corpo, porém, o homem-prótese também perdeu a alma. Ele não pode aceitar a alma, pois afirmá-la implicaria a aceitação de um essencialismo com o qual não pode conviver sem deixar de ser homem-prótese. O anti-essencialismo é a garantia de sua existência.7 Sem o pão anti-essencial o corpo-prótese não pode se sustentar. O preço de se alimentar com esse pão é a perda da alma, e é por isso que o corpo de carne é tão importante. É necessário que preparemos os nossos estômagos com o pão essencial, a fim de que possamos, mais tarde (quem sabe?), digerir o Pão Superessencial. Saco vazio não para em pé.
Uma expressão simbólica notável (e muito curiosa) disso que acabo de falar foi a ocasião em que a cantora Lady Gaga foi ao MTV Video Music Awards receber seus prêmios usando um vestido feito de carne, em 2010.
Digo “acelerada”, e não “criada”. Com efeito, essa tendência é muito anterior ao advento da internet. Em meu texto Anti-essencialismo e Desumanização eu menciono brevemente o argumento de Mary Harrington, de que o advento inaugural da Era Ciborgue, i.e. da era transumanista pós-industrial, foi a popularização da pílula anticoncepcional nos anos 60. Devemos considerar, contudo, o fato de que a tendência demiurgista de que falo aqui, embora tenha se estabelecido culturalmente na Era Ciborgue, sempre esteve presente de modo latente como um elemento estrutural da nossa civilização. Trata-se de uma herança gnosticista, a meu ver. Mais adiante falarei disso.
Veja-se Jean Baudrillard, A Transparência do Mal, Campinas: Papirus Editora, 2006, p. 27-29.
Tema de que tratei mais demoradamente em outra ocasião.
Trata-se, portanto, de uma fórmula simbólica que exprime um ideal: a libertação interior dos condicionamentos da existência individual. Isso expressa a possibilidade de um contato entre o “eu” experimentado ordinariamente e o “Eu divino”, por assim dizer. Tomar essa expressão como se fosse uma descrição atual da condição de um determinado indivíduo é, não apenas um erro metafísico grosseiro, como um caminho seguro para o inferno. Podemos, então, nos lembrar de uma fórmula Budista que diz que “entre o Buddha e os estados infernais há apenas um fio de cabelo”.
A natureza humana não é uma espécie de acidente agregado à natureza divina do Verbo, pois as duas naturezas estão unidas hipostaticamente no Filho. Essa união hipostática significa uma união que está na Pessoa (ὑπόστᾰσις) do Verbo. Daí que a separação das duas naturezas crie necessariamente uma cisão na Pessoa mesma do Filho; ela o despersonaliza.
Veja-se meu Anti-essencialismo e Desumanização.
Muito bom, Leo. Não sei se o "pós-materialismo" dos perenialistas faz deles "awliyā ash-Shaytān", ou se eles não são somente vítimas deste processo (e destas pessoas). Mas, descontada esta questão, que é menor, concordo perfeitamente. Ótimo ensaio.