Tendo em vista o fato de que a teologia franciscana, e em especial a de São Boaventura, é menos conhecida que a teologia tomista aqui no Brasil, pensei em fazer uma breve introdução a ela no presente texto. Conhecer essa teologia é importante, não apenas pelo fato de São Boaventura ser um doutor da Igreja, mas também pela sua grande influência, por exemplo, sobre o Segundo Concílio de Lyon (1272-1274)1 e sobre o Concílio de Florença (1431-1449). Ambos os concílios discutiram, entre outras coisas, as relações entre a doutrina dos latinos e a dos gregos, dando um enfoque especial ao tema da pneumatologia.2
Sem negar a importância de São Tomás, creio que um diálogo frutífero com os ortodoxos possa ser melhor orientado a partir do paradigma franciscano. Sintam-se livres para discordar de mim nesse ponto, mas já desejo boa sorte àqueles que discordarem, pois não será fácil entrar em uma discussão com os capadócios sem a ajudinha de São Boaventura.
Monarquismo Trinitário
O Doutor Seráfico evidentemente pressupõe a formulação trinitária básica que distingue a natureza divina, que é una, e as três hipóstases. As três pessoas — Pai, Filho e Espírito Santo — são distintas e consubstanciais, isto é, uma não se confunde com a outra, mas as três compartilham uma mesma natureza. Essa formulação básica é aceita, não apenas por franciscanos e dominicanos, mas pelos latinos e bizantinos, de modo geral.
A teologia dos ortodoxos afirma a monarquia do Pai: a primeira hipóstase é a fonte das outras duas. O Pai é a se (por si mesmo), enquanto o Filho e o Espírito Santo são ab alio (por meio de outro). Isto não faz com que o Filho e o Espírito Santo sejam causados no sentido físico da palavra causa, é claro. No entanto, o uso da palavra causa para se referir à relação entre o Pai e as outras duas hipóstases é comum, tanto na teologia bizantina3 quanto na teologia latina.4 Também não devemos confundir o monarquismo com um subordinacionismo: a soberania do Pai não diminui em nada a natureza do Filho e do Espírito Santo. Ambos são perfeitamente Deus, não se distinguindo em nada do Pai em termos de natureza.5
O Monarquismo em São Boaventura
São Boaventura também apresenta uma concepção monárquica da Trindade, segundo a qual o Pai é fonte soberana.
O grande franciscano nos diz que o Princípio — o Pai das Luzes (Tiago 1:17) — se comunica de modo perfeito, enquanto é perfeito e soberano; e, sendo primeiro, é também simples, e por isso conserva a Sua unidade.6 A soberania só pode ser exercida numa relação real, daí a necessidade da comunicabilidade; e aquilo que é principial é necessariamente simples, pois a complexidade pressupõe multiplicidade, e o que é múltiplo depende de algo anterior e uno.
A comunicação do Princípio deve ser, além de perfeita, puramente espiritual. Por isso o Doutor nos diz que há dois modos espirituais de emanação/produção: um pela vontade e outro pelo intelecto (chamado também de "modo de natureza").7 Como cada produção do Princípio é perfeita, basta uma produção para cada um dos modos mencionados. Daí que existam apenas dois produzidos: um segundo o modo de natureza/intelecto, e este é o Filho; e o outro, segundo o modo de vontade, e este é o Espírito Santo. Cada uma dessas produções recebe perfeitamente do Princípio, de modo que não há a necessidade de novas produções. Uma nova produção segundo o modo de natureza seria uma geração imperfeita; uma nova produção segundo o modo de vontade seria uma espiração imperfeita. Assim, só podem existir duas produções que recebem perfeitamente a essência do Pai.8
O que se produz segundo o modo de vontade depende de uma produção anterior, segundo o modo de intelecto, pois a vontade é movida em decorrência de algo que a mente concebe, e não o contrário. Daí que o Princípio (o Pai) produza o Espírito Santo através do Filho, e juntamente com Ele. Essa analogia entre as pessoas da Trindade e o espírito humano é uma herança agostiniana9 muito marcada no pensamento de São Boaventura. O fundamento da analogia é bastante óbvio: uma vez que o homem é feito à imagem de Deus, e que essa imagem se encontra na parte espiritual do homem, não pode haver uma melhor maneira de se contemplar a Deus na criação do que voltando-se para essa imagem.
Algumas Distinções e a Questão Filioque
São Boaventura também diferencia entre propriedades hipostáticas, relações e noções.
Cada pessoa tem apenas uma propriedade, que é nomeada segundo modos diferentes.
A propriedade do Pai recebe algumas nomeações, como Pai, Ingênito e "Princípio que não se refere a outro princípio";
A propriedade do Filho se nomeia como Filho, Verbo e Imagem;
A propriedade do Espírito Santo, como Espírito Santo, Caridade e Dom.
Há quatro referências relativas na Trindade: paternidade, filiação, espiração e processão. Há cinco noções: as quatro referências relativas e o caráter de ser ingênito (que é a ausência de referência relativa a um princípio produtivo, da parte do Pai).
Se o Espírito Santo não procedesse também do Filho, não haveria referência relativa entre os dois. Ambos se relacionariam ao Pai, mas não teriam relação entre Si. Daí a necessidade da doutrina subjacente à cláusula filioque.
Deve-se dizer que a propriedade hipostática não é comunicável, mas as referências relativas o são. Por exemplo, a relação (que envolve a dupla referência paternidade-filiação) entre Primeira e Segunda Pessoas da Trindade é comum às duas, mas não é predicável da essência divina. Do mesmo modo, a referência relativa ao Espírito Santo, enquanto espirado, é compartilhada pelo Pai e pelo Filho. Assim se salva o princípio teológico que diz que aquilo que se predica da natureza é comum às três Pessoas, enquanto aquilo que se predica da propriedade hipostática de uma delas não é compartilhado com nenhuma outra.10
Processão Econômica VS Processão Hipostática
Quando menciona a multiformidade das aparições divinas, São Boaventura ainda fala do envio, e das relações entre o envio econômico e as produções eternas. No Brevilóquio ele diz:
‘Ser enviado’ designa os efeitos preditos,11 porém em razão de produção eterna. Assim, o Pai envia o Filho, quando — tornando-o presente entre nós pelo conhecimento e pela graça — insinua que dele o Filho procede. E, como o Pai não procede de ninguém, nunca se diz que é enviado. Como o Filho produz e é produzido, envia e é enviado. E como o Espírito Santo é produzido desde toda a eternidade, mas não produz senão no tempo, compete a ele propriamente ser enviado, não lhe competindo enviar, a não ser com relação às criaturas... Fica, pois, claro porque enviar e ser enviado não cabe a todas as pessoas, já que, embora suponha um efeito na criatura, indica, contudo, uma relação intrínseca, de tal modo que enviar demonstra autoridade, e ser enviado, sub-autoridade, em razão da produção eterna que interiormente comporta.12
Vemos que existe, de fato, em São Boaventura a distinção entre processão hipostática (ou “produção eterna”) e processão econômica, porém o envio econômico reflete a produção eterna. A distinção radical entre processão econômica e eterna é, ademais, estranha aos escritos dos Padres latinos.13 Jesus, assim, envia o Espírito Santo economicamente, porém indicando o fato de que Ele o espira eternamente junto com o Pai.
A Doutrina das Apropriações
São Boaventura também traz uma bela exposição da doutrina das apropriações.14 As apropriações são atributos predicados da natureza divina, e, portanto, compartilhados pelas três Pessoas, que, no entanto, podem dirigir a nossa mente a uma delas, de modo mais particular. A verdade, por exemplo, é dita das três Pessoas, mas a meditação sobre esse atributo dirige a nossa mente de um modo mais particular ao Filho. Dizemos, assim, que a verdade é uma apropriação do Filho.
Muitas listas de apropriações são possíveis, como, por exemplo: Onipotência, Onisciência e Benevolência; Unidade, Verdade e Bondade; Eficiência, Exemplaridade e Finalidade; Poder, Sabedoria e Vontade; e assim por diante. Ainda que esses atributos sejam compartilhados pelas três Pessoas, a meditação sobre a Unidade leva-nos à notícia do Pai; a meditação sobre a Verdade, à notícia do Filho; e a meditação sobre a Bondade, por sua vez, à notícia do Espírito Santo.
A verdade pressupõe alguma unidade, pois não pode haver inteligibilidade sem unidade; a bondade, por sua vez, pressupõe a verdade e a unidade, visto que o que é bom e desejável tem de ser também conhecido, e o que é conhecido deve ter alguma unidade. A ordem reconhecível nesses três atributos é um indício das relações entre as Pessoas Divinas. O leitor pode se aventurar explorando ordens semelhantes nos outros ternários mencionados acima.
Conclusão
Espero que esta breve introdução tenha sido útil a alguém, e que a familiarização com a teologia de São Boaventura abra novos terrenos para o diálogo. Quem me conhece sabe que tenho ótimas relações com os ortodoxos — alguns dos meus melhores amigos são ortodoxos muito dedicados, diga-se —, e que não é a minha intenção provocá-los em espírito de discórdia. Levo muito a sério as suas posições, tentando, sempre que possível, fortalecer seus argumentos ou, no mínimo, não os descaracterizar. Não posso, porém, fingir que a posição dos latinos seja aquela que frequentemente nos é atribuída pelos apologetas do oriente. Se cada um dos lados fizer o esforço sincero de chegar à verdade, sem fingir que os problemas que nos separam não existem, creio que poderemos nos encontrar em algum ponto. Toda proposta de união que passar por cima dessa condição deve, porém, ser imediatamente rejeitada.15
O Papa Gregório X, que presidiu o concílio, não apenas estudou na universidade de Paris à época em que São Boaventura lá lecionava, mas também teve sua eleição facilitada pelo Doutor Seráfico. Era, portanto, uma pessoa muito próxima de Boaventura. Foi Gregório, aliás, quem nomeou cardeal o grande franciscano.
Nos documentos de Lyon II, contudo, a passagem sobre pneumatologia é bastante breve. Quando Duns Scot, outro grande franciscano, discute o tema da filioque em seu Ordinatio, ele cita a fórmula de Lyon II; fato que demonstra a importância dessa formulação para a ordem franciscana — Duns Scot, embora não seja doutor da Igreja, é doutor da ordem. Veja-se Duns Scot, Ordinatio, dist. XII.
Veja-se São João Damasceno, A Fé Ortodoxa.
A teologia latina prefere o uso da palavra princípio, em vez de causa, contudo. Veja-se, por exemplo, os documentos do Concílio de Florença.
A superioridade do Pai é de origem, e não de natureza.
Veja-se São Boaventura, Brevilóquio 1.3.2.
São os únicos modos pelos quais um princípio espiritual (como, por exemplo, a alma humana) pode operar sem o concurso da matéria. Eles correspondem à concepção intelectual e ao amor, que é ato da vontade.
Não é preciso dizer que essas produções não acontecem no tempo. A geração do Filho e a espiração do Espírito Santo são produções eternas.
Veja-se Santo Agostinho, De Trinitate.
Essa é uma objeção comumente dirigida aos latinos, pois aparentemente haveria uma propriedade hipostática compartilhada por apenas duas Pessoas — a saber, a espiração —, o que não pode acontecer. Ademais, a espiração do Pai e a espiração do Filho, embora recebam o mesmo nome, não são idênticas sob todos os aspectos, pois o Pai possui a capacidade de espiração de modo originário, enquanto o Filho a possui de modo derivativo (pois a recebe do Pai). A processão do Espírito Santo, contudo, é uma recepção única: Ele recebe do Pai e do Filho como de um único princípio.
A saber, o habitar, o aparecer e o descer.
Boaventura de Bagnoregio, Escritos Filosófico-Teológicos Vol. I, trad. Luis Alberto de Boni, Jerônimo Jerkovic, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, pp. 94-95.
Quanto aos Padres gregos, sinceramente não sei avaliar se é lícito atribuir aos seus escritos essa separação. Preciso investigar essa questão mais a fundo.
Embora a sua formulação seja uma das mais interessantes, essa não é uma doutrina original do Doutor Seráfico. A encontramos, por exemplo, nos escritos de Santo Agostinho e Santo Hilário.
Me refiro principalmente ao impulso ecumenista que busca uma união institucional enquanto joga para debaixo do tapete os problemas reais que separam oriente e ocidente. Não vejo como esse impulso poderia vigorar sem que os corações latino e bizantino recebessem, cada um, um golpe fatal. Me chamem de louco se quiserem.
Excelente como sempre, Leo. Não sou nenhum especialista em teologia, seja latina ou ortodoxa, mas me parece que alguns pensamentos de São Boaventura são perfeitamente alinhados à ortodoxia (claro que um ortodoxo poderá dizer melhor). Sobre a questão específica da filioque, o buraco é mais embaixo, obviamente - por ora, minha visão (que provavelmente deverá ser revista quando eu entender um pouco mais do assunto) é parecida com a da minha esposa, que cito: "Se esse povo brigou por isso aí é porque já estava querendo brigar" (sic). Abração!