Com o ainda recente lançamento de algumas das obras de René Guénon em língua portuguesa pelo Editorial Estrela da Manhã o interesse pelo autor cresceu de modo notável em certos meios. Isso é muito bom. Contudo, o número de bobagens sendo escritas e atribuídas de maneira injusta ao pensamento do metafísico francês vem crescendo de maneira não menos notável. Sei que essa simples observação já pode soar, aos ouvidos mais acostumados à dinâmica futebolística, como uma espécie de “defesa ao time dos guenonianos” ou “defesa ao time dos tradicionalistas”. Mas a verdade é que não sou um “guenoniano” nem tampouco um “anti-guenoniano”, e minha única preocupação aqui é evitar que essas exposições infiéis ao pensamento de Guénon acabem afastando aqueles que muito poderiam se beneficiar dos tesouros que sua obra oferece, ou simplesmente acabem desviando-os do sentido mais profundo de suas ideias.
Uma dessas exposições inexatas por acaso veio da parte de um conhecido meu. Há algumas semanas ele publicou em seu facebook uma espécie de “dicionário de René Guénon”, e, com um tom zombeteiro insuportável, deixou-nos uma pequena amostra de suas críticas geniais ao Grande Sufi. Não preciso dizer que pouco se aproveitou de tudo o que ele escreveu, e que pouco adiantou mencionar educadamente seus equívocos na sessão de comentários.
Algumas pessoas que assistiram à nossa discussão vieram a mim e disseram ter gostado do que escrevi. Dentre elas um grande amigo que, após ter me dado uma bronca e me aconselhado — mui sabiamente, aliás — a não perder tempo com aquela discussão infrutífera, me encorajou a apresentar o que escrevi em formato de artigo. Confiando no conselho dos mais velhos, pus-me a escrever esta breve introdução ao pensamento de René Guénon.
Não tenho aqui a pretensão de falar em nome de René Guénon ou dos ditos Tradicionalistas, nem quero que o leitor pense que sou um desses “homens iluminados” que sondam desde os mais profundos abismos da terra até os mais excelsos mistérios divinais. Não sou mais do que um jovem estudante de filosofia que se esforça por permanecer tocando o firme terreno da verdade com a planta dos pés. É com esse espírito, e com a esperança de não ser infiel às ideias do autor cujo pensamento procuro expor, que escrevo esta breve introdução. Espero que seja de alguma serventia para o leitor.
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Antes de tudo, cabe aqui um esclarecimento acerca do próprio uso da expressão “pensamento de René Guénon”, pois o autor em questão é antes de tudo um expositor de ideias que não são suas. Quando falo em um “pensamento de René Guénon”, me refiro à maneira particular com que este apresentou as diversas doutrinas tradicionais por ele expostas. É evidente que a tradução das concepções orientais para a mentalidade do homem ocidental moderno exigiu de Guénon um certo esforço elaborativo. Ele teve de nos explicar as doutrinas orientais, não como os próprios orientais as exporiam a um neófito pertencente à sua própria tradição, mas utilizando-se do instrumental filosófico oferecido pela escolástica, dos símbolos de diferentes tradições (orientais e ocidentais), e assim por diante. Isso nos dá algum direito de falar de uma unidade conceptual própria da obra de Guénon. Creio que essa observação é suficiente.
A ideia de Tradição
Para minha surpresa alguns afirmaram que Guénon não foi suficientemente claro ao apresentar o conceito de Tradição. Na verdade, trata-se de um conceito bastante simples. Digamos, por ora, que tradição é a transmissão de uma doutrina de natureza intelectual e supra-humana (a qual pode estar em estado puro ou não) sob formas diversas (como por meio de símbolos, ritos, hábitos, narrativas etc.). Vejamos tudo isso em maiores detalhes.
Primeiramente, Guénon afirma que o termo “tradição” deve ser entendido, de início, em seu sentido etimológico, ou seja, simplesmente como “aquilo que é transmitido” (Introduction to the Study of the Hindu Doctrines, Londres, Burleigh Press, 1945, p. 87-88). Em seguida ele afirma que é necessário incluir na noção de tradição, “como elementos secundários e derivados que, não obstante, são importantes para que uma imagem mais completa se forme, toda a série de instituições de espécies variadas que tem seu princípio na própria doutrina tradicional” (Ibid., p. 88).
Certo, aqui um espertalhão poderia dizer, “mas, afinal, o que é essa doutrina tradicional? Isso é um argumento circular!”. Bom, visto que ele não disse que a tradição tem princípio na doutrina tradicional, mas que as instituições tradicionais é que o têm, não houve tautologia. Ele apenas não explicou ainda o que é a doutrina tradicional. Vejamos então o que Guénon fala a respeito desta.
Mais à frente, no mesmo livro, ele diz que as “instituições tradicionais”, isto é, aquelas instituições que, embora sejam elementos secundários, devem estar incluídas na noção de tradição, “encontram sua justificação última em sua dependência, mais ou menos direta — mas sempre intencional e consciente — em uma doutrina cuja natureza fundamental é, invariavelmente, de ordem intelectual: mas essa intelectualidade pode ser encontrada num estado puro — e nesse caso se trata de uma doutrina plenamente metafísica —, ou misturada com elementos heterogêneos, como é o caso da religião, ou das outras formas especiais que uma doutrina tradicional pode assumir” (Ibid., p. 89-90).
Está bem claro, portanto, que a doutrina tradicional de que Guénon falava anteriormente, e na qual, segundo ele, as instituições tradicionais encontram seu princípio, é uma doutrina de natureza intelectual, e pode assumir pelo menos duas formas distintas: a de uma doutrina metafísica, em sentido estrito, ou a de uma doutrina de tipo especial, que mistura à natureza intelectual elementos que lhe são heterogêneos (a forma propriamente religiosa se insere aqui, segundo ele).
Alguém pode então perguntar, “quais são essas instituições, afinal?”, e podemos responder que são todas as coisas que, sendo secundárias em relação a uma determinada doutrina fundamental (que já vimos ser de natureza intelectual), podem ser chamadas “tradicionais” (a arte, os símbolos, os ritos, os hábitos, os cultos, e assim por diante).
Em outra obra, falando sobre a existência de uma incompatibilidade entre “as explicações ‘humanistas’ [dadas aos fenômenos de ordem tradicional, como os da religião, por exemplo] e o espírito tradicional”, Guénon nos dá uma informação importante. Segundo ele, essa incompatibilidade é bastante óbvia, “uma vez que não levar em conta o elemento ‘não-humano’ é precisamente não compreender a essência mesma da tradição”, e diz que sem esse elemento não-humano1 “nada sobra que mereça esse nome [isto é, o de “tradição”]” (Perspectives on Initiation, Nova Iorque, Sophia Perennis, 2004, p. 41).
Assim, Guénon afirma que é da essência mesma da tradição o elemento “supra-humano” — que ele identifica às “inspirações” (Ibid., p. 41), as quais já haviam sido divididas em duas classes, correspondentes aos conceitos hindus de Shruti e Smrti (veja-se Introduction to the Study of Hindu Doctrines, parte III, c. V).
Toda tradição, portanto, tem como centro uma doutrina intelectual de natureza supra-humana, e é desde esse centro que irradiam as instituições tradicionais, as quais veiculam a influência celeste do centro para os mais diversos âmbitos da civilização.
A palavra “doutrina”, aqui, pode acabar nos dando uma pista errada. Não devemos entender essa doutrina intelectual como uma espécie de sistema de proposições, ou um tipo de tratado de metafísica elaborado por uma classe de profetas-escolásticos. Quando Guénon fala de uma “doutrina tradicional”, ele se refere ao núcleo sapiencial que serve de fundamento para a tradição. Esse núcleo sapiencial pode assumir várias formas, mas, por conta de sua natureza intelectual (que é de ordem “supra-formal”), jamais se esgota em nenhuma delas. Assim podemos falar, por exemplo, de uma doutrina intelectual que se oculta por trás das letras dos Vedas, do Quran, do Tao Te Ching, e assim por diante. Esse esclarecimento é importante.
A Tradição Primordial e o problema de sua historicidade
Outro conceito que parece ter sido mal compreendido é o de Tradição Primordial. Vejamos do que se trata.
A parte mais complicada de explicar esse negócio é contextualizá-lo com a doutrina hindu dos ciclos cósmicos, tal como é apresentada por Guénon em vários de seus livros (especialmente em Formes Traditionnelles & Cycles Cosmiques).
Podemos dizer, inicialmente, que a Tradição Primordial é a primeira “revelação” do nosso atual manvantara (um período cósmico imenso divido em quatro yugas, ou “eras”). Essa tradição é geralmente identificada por Guénon à hiperbórea, e a correspondência entre os símbolos das várias tradições existentes se explicaria, segundo a interpretação Guenoniana, por uma ligação entre estas e a própria Tradição Primordial (veja-se Formes Traditionnelles & Cycles Cosmiques, c. II, III e IV).
Segundo a doutrina dos ciclos cósmicos, tal como apresentada por Guénon, estamos atualmente no Kali-Yuga, a era derradeira de nosso manvantara. Essa última fase do ciclo é a menor de todas as quatro eras: tem apenas 6.480 anos (1/10 da duração total do manvantara). O Kali-Yuga é a era das trevas, o período no qual a manifestação cósmica está maximamente afastada de seu princípio. Com o fim do Kali-Yuga se encerrará também o atual ciclo, e um novo manvantara se iniciará. O período de maior afastamento do princípio será sucedido pelo período de maior aproximação dele, o Satya-Yuga. Este é uma espécie de “Idade do Ouro”, o mais favorável de todos os períodos cósmicos. A Tradição Primordial, segundo Guénon, teve origem no Satya-Yuga do nosso atual manvantara.
Fica implícito no que foi dito que a primeira tradição do Satya-Yuga é também a mais pura de todas, uma vez que nessa era tudo está mais próximo do Princípio. Daí a importância que isso tem para Guénon.
Nosso autor não deixa claro se a ligação existente entre as várias formas tradicionais e a Tradição Primordial se dá por meio de uma transmissão histórica regular. Na verdade, para complicar formidavelmente essa questão, lemos em um dos apêndices de Initiation et Réalisation Spirituelle que existe um tipo de iniciação que é a um só tempo histórico e supra-histórico: aquela que Guénon atribui ao Khidr (figura misteriosa que aparece no Quran orientando Moisés, como uma espécie de autoridade espiritual a que este se sujeitara).
Na edição de janeiro de 1911 da revista La Gnose, Ivan Aguéli (o sujeito que levou Guénon ao Islam) escreveu sobre a existência de duas cadeias iniciáticas de ordens diferentes: El-Talimur-Rijal (“a instrução dos homens”) e El-Talimur-Rabbani (“a instrução senhorial”). A primeira é histórica; a segunda é “espontânea”. Segundo Aguéli, a própria Santíssima Virgem teria sido iniciada pela Instrução Senhorial, e esse tipo de iniciação, que é muito raro, dispensaria a necessidade de uma cadeia humana de transmissão. Há também, segundo ele, a possibilidade de que o iniciador, ou Sheikh, seja alguém que morreu há muitos séculos.
René Guénon escreveu um breve comentário a esse texto de Aguéli em uma das edições da revista Études Traditionnelles. Esse comentário foi, alguns anos depois, incluído por Jean Reyor em sua edição do já mencionado Initiation et Réalisation Spirituelle. No comentário Guénon afirma que a Instrução Senhorial equivale, no Islam, à via dos Afrâd, cujo líder é o próprio Khidr. Essa via está acima da jurisdição do Pólo (qutb)2, que compreende apenas as “vias regulares e habituais de transmissão”.
Abro aqui um parêntesis para comentar que algo semelhante a isso existe na própria tradição Cristã. São João Batista, por exemplo, recebeu uma investidura espiritual diretamente de Elias, tal como Eliseu. Não é necessário, nesse caso, supor que havia uma transmissão regular de discípulos de Eliseu, e que estes formaram uma ordem iniciática secreta à qual São João Batista se vinculou posteriormente. Basta que o próprio Elias, que segundo a tradição está vivo corporalmente, lhe tenha transmitido diretamente o seu “espírito e poder” (Lc 1:17). O caso do Khidr na tradição Islâmica é semelhante, pois acredita-se que ele também não experimentou a morte corporal, e que se encontra regularmente com Elias até hoje.
Também há no Cristianismo o caso de Melquisedec, o qual transmitiu uma influência espiritual a Abraão (pois “o abençoou”), e o qual também dá nome à ordem da qual provém o sacerdócio do próprio Cristo. Segundo o Apóstolo, Melquisedec é “sem pai, sem mãe, sem genealogia, não tendo princípio de dias nem fim de vida, mas feito semelhante ao Filho de Deus” e “permanece sacerdote para sempre” (Hb 7:3). É evidente que não se trata aí de uma “transmissão regular e habitual”. Não cabe a mim, todavia, entrar em especulações a respeito da ordem de Melquisedec, pois nem mesmo os hebreus convertidos da época de São Paulo estavam à altura desse assunto, como afirma o próprio Apóstolo (Hb 5:11).
Retornando ao nosso autor, é perfeitamente possível que a conexão entre a tradição do primeiro manvantara e as demais tradições se desse, para Guénon, pela via “Senhorial”. Por exemplo, cada profeta de cada tradição pode ter recebido uma investidura espiritual de alguma linhagem que está fora e acima das cadeias históricas, e essa linhagem que é princípio das várias cadeias históricas pode ter sido instituída no próprio Satya-Yuga. Não estou afirmando que as coisas são assim, mas que isso não é incoerente com a obra de Guénon.
Também há dúvidas quanto ao Satya-Yuga de nosso manvantara ter ou não ocorrido “neste mesmo mundo”. O próprio autor afirma não estar certo disso, nesta carta enviada a Ananda Coomaraswamy. É admissível, para ele, que o início de nosso manvantara não tenha sido “histórico” no mesmo sentido em que dizemos que a revolução francesa foi um evento histórico, pois as próprias condições existenciais às quais os seres do Satya-Yuga são submetidos diferem daquelas às quais se submetem os do Kali-Yuga — nesse sentido, duas eras diferentes são também dois “mundos” diferentes. Também vemos na doutrina dos Estados Múltiplos do Ser que todos os graus de existência, modalidades e estados se dão simultaneamente desde o ponto de vista da metafísica pura, de modo que a interação entre dois yugas cujas condições existenciais são extremamente diferentes, como é o caso do primeiro e do último de cada manvantara, talvez possa tomar uma forma “vertical”, e não apenas “horizontal”.
Em suma, me parece impossível saber exatamente como Guénon concebia a relação entre a Tradição Primordial e as demais tradições. Por isso também é um pouco constrangedor ver alguém tentando contestá-lo nesse ponto. Uma vez que o sentido dessa relação não foi expresso de modo inequívoco, ela não tem sentido unívoco evidente; se ela não tem sentido unívoco evidente, ela pode significar muitas coisas diferentes; e se ela pode significar muitas coisas diferentes, e esses significados diversos têm certa articulação entre si, ela está expressa em clave simbólica. E, como diz o mestre Suhrawardi, “não se pode refutar um símbolo”.
Metafísica e Intuição Intelectual
Metafísica é “o conhecimento dos princípios universais dos quais todas as coisas dependem, direta ou indiretamente” (Orient et Occident, c. II). Trata-se de um conhecimento de ordem supra-racional, um conhecimento que não pode ser circunscrito por nenhuma fórmula, imagem ou pensamento.
Alguns, indevidamente, descreveram esse conhecimento como sendo de ordem “mental”. Isso, além de não fazer justiça às ideias do autor, causa uma confusão terminológica danada — confusão que o próprio autor tratou de evitar, usando as palavras de modo muito cuidadoso. Convém lembrar que, quando Guénon fala em “mente”, geralmente ele está se referindo ao que os escolásticos chamavam de sentido comum (o manas dos hindus, em sua acepção inferior); ao passo que “intelecto”, para ele, é justamente aquilo que os escolásticos entendiam por esse termo (o buddhi dos hindus, ou manas em seu sentido superior).
O problema do uso da palavra “mental” para descrever a natureza do conhecimento metafísico é que ele torna as coisas muito vagas, pois podemos falar de fenômenos mentais que nada têm a ver com a metafísica. A assimilação de um discurso sobre a doutrina metafísica, por exemplo: o sujeito está lá pensando em Purusha, Prakriti, o Ser Puro etc.; tudo isso está na mente dele, mas é apenas um conhecimento de tipo indireto, refletido. Em outras palavras, as formas discursivas referentes aos princípios metafísicos, por mais belas que sejam e por mais que o sujeito consiga repeti-las com alguma desenvoltura, não são ainda o conhecimento metafísico.
A metafísica é um conhecimento puramente intelectual dos princípios. O ser humano pode conhecer esses princípios de modo indireto ou de modo direto. Quando lemos um tratado filosófico ou teológico, por exemplo, obtemos algum conhecimento sobre os princípios universais, entretanto, esse conhecimento é obtido por reflexão, por meio de esquemas mentais que não são idênticos às realidades que eles representam para nós. Mas uma coisa é ler sobre o vinho, sobre sua constituição molecular, sua história, seus vários tipos etc.; e outra coisa é ter o cálice em mãos, levá-lo à boca e então saborear o vinho diretamente. O primeiro modo de conhecimento é comparável ao daqueles que só conhecem os princípios de modo indireto — eu evidentemente me incluo nesse grupo, se tanto —, e o segundo modo de conhecimento é comparável ao daqueles que têm o conhecimento metafísico propriamente dito. Guénon chamou esse segundo modo de intuição intelectual, pensando — assim creio — na palavra árabe dhawq3 e na primeira operação do intelecto tal como descrita por Aristóteles.
A intuição intelectual não é um modo de conhecimento exclusivo dos metafísicos; na verdade, qualquer conhecimento real implica alguma intuição intelectual. Nós, no entanto, não costumamos intuir intelectualmente as realidades supremas enquanto tais. Um tal conhecimento, se efetivado, nos identificaria a essas realidades, pois “o intelecto em ato e o inteligível em ato são a mesma coisa” (Aristóteles, III De Anima 4, 430a). Isso nos leva ao tema da iniciação e da realização espiritual.
Realização Espiritual e Iniciação
A realização espiritual muitas vezes também é má compreendida. Alguém recentemente tentou defini-la como uma “conformação mental aos princípios metafísicos”, o que é bastante inexato, pra dizer o mínimo. Seguindo a concepção guenoniana, não se pode dizer que o Realizado, ou Liberto, está “conformado” aos princípios, mas que é idêntico ao Princípio Supremo. Isso evidentemente pode ser contestado no plano doutrinal, mas é uma expressão mais fiel às ideias do autor.
A expressão “realização espiritual” é, de modo geral, usada para se referir especificamente à Identidade Suprema, que é o mais alto dos graus iniciáticos, embora Guénon também fale em “realizações” de outros estados, correspondentes a graus iniciáticos inferiores (como o do Homem Primordial ou Homem Verdadeiro, por exemplo). A Identidade Suprema é a total identificação com o Princípio Supremo incondicionado, ou, dito de outro modo, é a efetivação do quarto estado de Atmâ: Turiya (veja-se L’homme et Son Devenir Selon le Vedanta, c. XV; e Initiation et Réalisation Spirituelle, c. XXXII).
Quanto à Iniciação, parece que Guénon usa o termo em pelo menos quatro acepções: i) a vinculação a uma cadeia iniciática regular; ii) a influência espiritual transmitida por uma ordem iniciática; iii) a via de efetivação daquela influência espiritual recebida; e iv) a efetivação daquela influência recebida. Geralmente ele alterna entre todos esses sentidos sem avisar o leitor. No entanto, ele faz questão de evidenciar a diferença entre aquilo que chamou de iniciação efetiva (a efetivação de uma determinada influência espiritual transmitida pela já mencionada vinculação) e a iniciação virtual (a presença, em modo latente, de uma determinada influência espiritual que, se cultivada interiormente da maneira correta, pode conduzir o sujeito a graus iniciáticos superiores).
Dizer que iniciação é, num dos seus sentidos, o vínculo a uma “ordem iniciática” não é nenhuma tautologia, pois “iniciática”, quando dito de uma ordem esotérica, não tem o mesmo sentido que “iniciação”, quando dito de um vínculo entre um sujeito e uma ordem — da mesma maneira que “saudável”, dito de um alimento, não é a mesma coisa que “saudável”, dito de um homem que não está doente. A ordem é iniciática enquanto possui meios de transmitir uma influência espiritual que, se interiormente cultivada, conduzirá o sujeito à realização da Identidade Suprema ou de algum outro estado supra-individual. Uma ordem que se pretende iniciática e não possui esses meios cai na categoria das pseudo-iniciações; uma ordem que, além de não possuir esses meios, transmite uma influência de natureza “demoníaca”, cai na categoria das contra-iniciações.
Essência e Substância
A palavra essência é usada pelo autor num sentido semelhante ao que tinha a palavra eidos (espécie) para Aristóteles, e corresponde ao aspecto formal dos entes. Mas Guénon usa a palavra num sentido ainda mais amplo, pois ele tem sempre em mente a noção vedantina de Purusha, que é, na verdade, o princípio de todas as formas individuais — estas não são senão manifestações fragmentadas suas, e é precisamente isso o que a tradição védica representa simbolicamente pelo “sacrifício universal” do Purusha Sukta (veja-se Rig Veda X.90).
O fato de Guénon afirmar que pensava em eidos (espécie), e não em morphé (forma), quando usava a palavra é também interessante (veja-se Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, c. II). As razões para essa escolha podem ser as seguintes, a meu ver: a) a forma de uma substância é sempre particular, ao passo que a noção da espécie corresponde à forma com abstração da materia signata — ou seja, é um universal, em sentido aristotélico; e b) Guénon queria evitar a palavra “forma”, pois era frequentemente usada em oposição à “conteúdo” — especialmente entre os críticos de arte —, e nessa oposição a forma corresponde ao aspecto rupa, e não a nama.
A palavra substância é usada num sentido semelhante ao que a palavra hyle (matéria) tinha para Aristóteles. Guénon também usa “substância” num sentido mais amplo, pois tem em mente o conceito de Prakriti, que é a pura potencialidade sobre a qual atua o Purusha. O conceito se aproxima bastante da Materia Prima dos escolásticos. Guénon usa as palavras “essência” e “substância”, ora para se referir a Purusha e Prakriti enquanto princípios de toda a relação ativo-passivo, ora para se referir aos aspectos de um determinado ente que correspondem analogamente a essa oposição primordial (veja-se Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, c. I e II; Les États Multiples de l’être, c. V; e L’homme et Son Devenir Selon le Vedanta, c. IV).
Ser e Não-Ser: eis um problemão
O Não-Ser guenoniano não é um mero nada, mas aquilo que transcende e abarca a ordem do Ser. O termo foi pego de empréstimo da tradição extremo-oriental: “Não-Ser” é uma tradução do Wu-Chi Taoísta. Pertencem à ordem do Não-Ser todas as possibilidades de manifestação e de não-manifestação. Enquanto não exclui nenhuma possibilidade, ele pode ser identificado à própria Possibilidade Universal (veja-se Les États Multiples de l’être, c. III, IV e V; L’homme et Son Devenir Selon le Vedanta, c. XV).
A Possibilidade Universal não deve ser aqui entendida como a mera soma de possibilidades hipotéticas, mas como o conjunto de tudo o que há, em sua subsistência principial. Contendo, assim, a virtude de todo o real, ela é a Totalidade Universal.
Em um de seus primeiros escritos Guénon nos diz o seguinte:
“[...] Se considerarmos a Totalidade Universal, é bastante evidente que ela contém todas as coisas, pois todas as partes estão contidas no Todo; por outro lado, o Todo é necessariamente ilimitado, pois, se houvesse um limite, o que estivesse para além desse limite não seria compreendido pelo Todo, e isso é absurdo. O que não tem limite pode ser chamado Infinito, e, como ele contém tudo, esse Infinito é o princípio de todas as coisas. Ademais, o Infinito é necessariamente uno, pois dois Infinitos que não fossem idênticos se excluiriam mutuamente. Segue-se que não há senão um Princípio único de todas as coisas, e esse Princípio é o Perfeito, pois o Infinito não pode ser assim se não for o Perfeito.” (“Le Démiurge” em La Gnose, edição de novembro de 1909)4
O Não-Ser, como foi dito, pode ser assimilado à própria Possibilidade Universal, mas apenas enquanto esta é contraposta à primeira de todas as suas determinações: o Ser.
O Ser é o princípio da Existência. Ele corresponde ao Ishwara, ou ao estado de prajna dos hindus. Ele é a Unidade Primordial da qual procede a oposição Purusha-Prakriti. É, em si mesmo, não-manifestado, e dele procedem todos os graus da Existência Universal. Inclui em si a Existência e todas as possibilidades de manifestação, mas apenas na medida em que elas se manifestam (veja-se Les États Multiples de l’être, c. III; e Le Symbolisme de la Croix, c. I).
Não se deve pensar que o Ser é um atributo do Não-Ser, mas que é o próprio Princípio Supremo considerado sob certo aspecto determinado. É por isso que Guénon nos diz que o Ser é Deus enquanto se relaciona com a Manifestação/Criação.
Alguns quiseram recentemente estabelecer uma equivalência — evidentemente inexistente — entre o Princípio Supremo do qual o Ser Puro é a primeira determinação e o conceito de “ser” dos escolásticos. Porém, quando os Peripatéticos falam do ser, não se referem a uma determinada substância, mas à entidade das substâncias (e acidentes), em geral. Diz-se que o ser é um transcendental porque ele não pode ser um gênero, visto que o gênero se predica univocamente de todas as suas espécies, mas o ser não se predica univocamente de todos os entes. O ser, nesse sentido, não é uma substância, mas algo comum a todas as substâncias, de modo análogo. Faria mais sentido, penso eu, comparar o Não-Ser guenoniano ao Ipsum Esse Subsistens tomista, e não ao simples conceito de ser como ens communis. Ainda assim, seria problemático traduzir o Wu-Chi como Ipsum Esse, pois faltaria o termo correspondente ao T’ai-Chi (que Guénon traduziu como Ser). Em suma, a escolástica não fez essas distinções da metafísica taoísta, ou, ao menos, não as fez do mesmo modo, de maneira que não há aqui termos correspondentes que, quando contrapostos, representem a mesma relação existente entre os termos da metafísica extremo-oriental.
Também não devemos pensar que o Ser é a mera existência dos entes. A confusão pode surgir do fato de que, para os Peripatéticos, a existência é o ato de ser que cada ente exerce, em particular, e que se diferencia de sua essência — e essa diferenciação se explica pelo fato de que não se pode predicar a existência da essência dos entes contingentes, pois aquilo que tem a existência por essência a tem necessariamente. Contudo, o Ser Puro guenoniano não é a existência dos entes, mas o princípio dos existentes, como já foi dito.
Convém dizer algumas palavras sobre as possibilidades de manifestação e de não-manifestação. Esse tema é tremendamente complicado. Que o leitor, por favor, leve em conta o fato de que estou apenas tentando expor o pensamento de Guénon até onde pude compreendê-lo, e que não é apenas provável, mas bastante natural, que minha inteligência não o tenha penetrado em toda a sua sutileza. Como disse mais acima, não sou nenhum “porta-voz da Tradição” nem tampouco um ‘Arif, mas apenas um estudante que leva seus estudos mortalmente a sério, e que, por respeito a um autor com quem muito aprendeu, se esforça sinceramente para não trair suas ideias nessa exposição.
As possibilidades de manifestação se dividem em duas categorias: as possibilidades de manifestação na medida em que se manifestam, e as possibilidades de manifestação na medida em que não se manifestam. As primeiras, até onde pude compreender, são as possibilidades de manifestação já condicionadas segundo os modos de ser dos domínios, graus e estados nos quais elas se manifestam; as segundas, ao contrário, são as possibilidades de manifestação enquanto não condicionadas por esses domínios, graus e estados. Creio que podemos dizer, em linguagem teológica, que as primeiras são a multiplicidade dos entes criados — não apenas aqueles que existem agora, mas em todos os tempos, e mesmo acima do tempo —, considerada de modo simultâneo, diante do seu Criador. Da mesma maneira, poderíamos dizer que as segundas são aquele aspecto das criaturas que só é conhecido verdadeiramente por Deus, e que é para Ele um conhecimento eternamente atual — pois se esse conhecimento não fosse atual desde a eternidade, haveria na Inteligência Divina a passagem de um estado de ignorância para um estado de conhecimento, o que é absurdo.
Há, além das possibilidades de manifestação, aquilo que Guénon chamou de possibilidades de não-manifestação. Estas são, na verdade, o aspecto do Princípio que não é abarcável enquanto tal pela Manifestação Universal. Isso decorre da própria Inefabilidade Divina: uma vez que o Princípio é Ilimitado e a Manifestação Universal é limitada, algo do Princípio sempre permanecerá para além de todos os modos de manifestação. As possibilidades de não-manifestação são, assim, os aspectos da Divindade que não podem ser circunscritos pelos limites da criação. A negação desses aspectos seria a negação da Ilimitação Divina (o que a reduziria à condição criatural), ou então a negação dos limites da própria criação (o que a elevaria à condição Senhorial).
Do ponto de vista da manifestação, é claro, as possibilidades de não-manifestação são verdadeiramente “impossibilidades de manifestação”. Do ponto de vista do Princípio, contudo, parecem ser, como disse certa vez um homem muito sábio, “os muitos modos pelos quais Deus pode conhecer a Si mesmo enquanto Deus”.
O Não-Ser, como disse mais acima, compreende todas as possibilidades de manifestação e de não-manifestação, enquanto o Ser compreende apenas as possibilidades de manifestação na medida em que se manifestam. Nisso, portanto, consiste a determinação do Ser em relação ao Não-Ser.
Agora, se o leitor vier me perguntar qual a relação disso tudo com a teologia trinitária — ou mesmo com a teologia ash’ari —, só lhe poderei dizer isto: eis aí um problemão, meu chapa.5
A Existência Universal e os Estados Múltiplos do Ser
Quanto à Existência, seria necessário resumir toda a doutrina dos Estados Múltiplos do Ser para precisar o sentido que esse termo tem para nosso autor. Guénon tratou do assunto de modo especial em dois livros: Os Estados Múltiplos do Ser e O Simbolismo da Cruz. No primeiro ele apresenta os fundamentos teóricos da doutrina, enquanto, no segundo, uma série de modelos geométricos é apresentada para simbolizar os diversos aspectos pelos quais podemos considerar a Existência. Creio que sem o segundo é impossível ter uma ideia suficientemente clara do que Guénon trata no primeiro. Não tenho condições de condensar aqui toda essa doutrina, porém algumas observações a esse respeito são necessárias.
Em primeiro lugar, convém observar que “Existência” é o nome dado por Guénon ao conjunto dos seres que procedem de algum princípio que lhes é, de algum modo, extrínseco. A Existência inclui, assim, os “três mundos”: mundo corpóreo, mundo psíquico e mundo espiritual — usando uma terminologia islâmica que certamente era familiar ao nosso autor, trata-se, respectivamente, de alam al-mulk, alam al-malakut e alam al-jabarut. Como os seres podem proceder de vários princípios extrínsecos, e de modos muito diversos, a Existência Universal possui uma série de estratos, cada um dos quais correspondendo às diferenças constitutivas que esses seres podem apresentar. Os termos que Guénon usa para designar esses vários estratos são graus de existência, estados do ser, condições, domínios e modalidades.
Cada grau de existência possui uma série incomputável de seres de um determinado estado. Esses estados podem ser individuais ou não-individuais (e estes, por sua vez, podem ser supra-individuais ou infra-individuais6). Há também, em cada grau de existência, uma série indefinida de domínios, cada um dos quais constituído de certas condições existenciais. Usemos como exemplo o grau de existência em que se situam os seres em estado individual, que é precisamente aquele a que pertence o nosso organismo psicofísico: as incontáveis individualidades que pertencem a esse grau de existência são determinadas por uma série de domínios, e cada um desses domínios corresponde a uma modalidade específica das individualidades. O mundo grosseiro (alam al-mulk), por exemplo, é um dos domínios aos quais a individualidade humana está sujeita, e a modalidade da individualidade que corresponde a esse domínio é o seu corpo. Existe uma série de condições que constituem o domínio da corporalidade, como, por exemplo, as dimensões espaciais, o tempo, o movimento local etc. Cada individualidade possui modalidades diversas, cada uma delas correspondendo a um domínio diferente, e dentro de cada um desses domínios há uma indefinidade de indivíduos.
Um mesmo ser, considerado integralmente, possui múltiplos estados, e cada um deles pertence a um determinado grau de existência. Assim vemos o quão bem articulados entre si os elementos da obra de Guénon são, pois o que foi dito acerca da doutrina dos Estados Múltiplos joga luz sobre temas tratados anteriormente: a iniciação, por exemplo, pode agora ser descrita como a via de ascensão de um ser do estado individual/humano a estados supra-individuais; os diversos graus iniciáticos correspondem aos estados superiores de um ser, cada qual situado num determinado grau de existência; a ciência simbólica se baseia na correspondência entre os vários graus, estados e domínios da existência; e assim por diante.
A questão do simbolismo agora fica mais fácil de ser tratada, pois seu fundamento é justamente a proporcionalidade entre os diferentes estratos da Existência Universal. Esse é, evidentemente, um tema que merece um tratamento à parte — se Deus quiser, escreverei sobre isso em breve. Por ora, basta apontar a relação de dependência existente entre a ciência simbólica e a doutrina dos Estados Múltiplos.
O qual, em uma nota de rodapé desse mesmo capítulo, ele afirma ser “supra-humano”.
Qutb é um termo usado na tradição islâmica para se referir ao santo que está no topo da hierarquia das autoridades espirituais de sua época.
A palavra Dhawq (ﺫَﻭﻕ) significa literalmente “gosto”, ou “sabor”. Ela é usada por Suhrawardi justamente para se referir ao conhecimento direto e “iluminativo”, próprio daqueles que conhecem a Haqiqa dos entes.
Tradução minha.
Espero não dar ao leitor a impressão de estar criticando Guénon nesse ponto. Apenas quero apontar para a dificuldade da questão e declarar minha incapacidade de resolver esse pepino.
Até onde posso me lembrar, Guénon não usa essa expressão em sua obra. Contudo, ele fala sobre a existência de estados infra-corporais — os quais ele identifica ao “mundo das cascas” (olam qlippoth) da tradição judaica, por serem, em relação ao nosso atual manvantara, as possibilidades do manvantara anterior “na forma de caput mortuum”.
Parabéns! Texto introdutorio à metafisica de Guénon muito bom.
Um maravilha de texto. A melhor apresentação de Guénon que já li em português, sem dúvida. Apenas senti falta da sua visão sobre o aspecto da obra de Guenon que mais me fascina e perturba: a crítica à modernidade, especialmente em O Reino da Quantidade.