Em um comentário ao meu último texto, Apofatismo e Teandria, meu amigo Bruno Bracco1 levantou alguns questionamentos muito interessantes. Tentarei responder a alguns deles por aqui, pois isso me dará a oportunidade de explicitar certos pontos que, lá no referido texto, eu não pude senão deixar nas entrelinhas.2
Encarnação e avatāra
O Bruno comentou que, ao terminar de assistir a um vídeo no qual o Prof. Wolfgang Smith afirma coisas semelhantes às que afirmo em meu texto, ele se pegou pensando “em um ponto específico: o Hinduísmo tem também encarnações de Vishnu. Não sei o quão heterodoxo isso é, mas mesmo Buda é mencionado como uma encarnação. Seja como for, colocando Buda na conta ou não, o fato é que há no Hinduísmo essa ideia de um Deus que se faz Homem”.
Ele se refere, aqui, ao tema do avatāra, o “descenso” divino3. Tenho por costume evitar o uso do termo encarnação como tradução do sânscrito avatāra, pois este possui um sentido muito mais amplo que aquele. Um hindu não veria problema algum em descrever a vida de Jesus Cristo como um fenômeno avatárico, mas olhar para a vida de Krishna, por exemplo, e dizer que se trata de uma encarnação já é bastante problemático para o cristão. E isto não é sem motivo. De fato, o termo encarnação possui um sentido mais técnico e restrito.
É comum, por exemplo, que os hindus usem o termo avatāra para se referirem a qualquer modo de manifestação do Princípio. Algumas escolas não veem problema em afirmar que todos os seres, sencientes ou não, são avatāras.4 De fato, na medida em que há alguma atividade divina em todas as coisas, sendo cada uma delas uma manifestação (vibhava) dependente do Princípio, pode-se dizer que tudo é de certa forma um descenso divino.
Mas há, é claro, usos mais estritos da palavra. O Visvaksena-samhita, da tradição Pañcarātra, faz a distinção entre avatāras primários (mukhya) e secundários (gauṇa, āveśa). Os primários consistem em qualificações ou aspectos de Vishnu5 que se encontram acima do nível de Prakriti6 (Viṣhṇu aprakrita), enquanto os secundários são instâncias subordinadas, pertencentes à manifestação formal (entre tais instâncias se encontram Vyasa, Arjuna e Buddha).7 Há também, segundo a mesma tradição, os arcā avatāras, imagens que comunicam certos aspectos da divindade e que são reverenciadas8 para fins espirituais.9 Em suma, todo modo pelo qual algum aspecto da divindade se faz presente aos homens é considerado um descenso divino. Não há na noção de avatāra qualquer especificação acerca do modo dessa presentificação. Já na noção cristã de encarnação esse modo é bastante preciso, e creio que não preciso me repetir sobre isso.
Ainda assim a questão levantada pelo Bruno é inquietante, pois apesar da noção de avatāra ser indeterminada quanto ao modo de presentificação da divindade, o fato é que casos como o de Krishna não nos permitem negar a existência da idéia de um “homem divino” na tradição hindu. Ela de fato existe, mas é substancialmente diferente da cristã. A questão da possível conciliação das duas eu deixarei para uma outra ocasião, pois isso é uma encrenca danada. Estou mais interessado aqui é na justa diferenciação das posições, pois é importante tratarmos cada tradição nos seus próprios termos antes de qualquer comparação metaconfessional — assim diminuímos consideravelmente o risco de reduzir indevidamente uma tradição aos esquemas de outra.10
Se encararmos a divindade de Krishna dentro do panorama oferecido pelo Vedanta, o mais elevado dos seis darśanas,11 teremos de vê-la como uma das várias manifestações cósmicas que refletem o paramātmā, o Supremo Si-Mesmo. Todas as manifestações simultaneamente revelam e ocultam esse Ātmā, pois, por um lado, ele não é nenhuma de suas manifestações, e por outro lado nenhuma manifestação é outra coisa senão ele. Enquanto são distintas dele, são o jogo (līlā) de māyā. Os adwaitins12 dirão mais que isso: enquanto são distintas do Ātmā, todas as coisas são avydia (a ignorância acerca de Brahman, a Realidade Última). Para um adwaitin, portanto, a diferença entre Krishna e qualquer outra manifestação é, do ponto de vista puramente metafísico13, irrelevante.14 O que não significa que, no que diz respeito à via da realização espiritual15, ela não seja determinante. Pois ter Krishna como guru é ter uma excelente oportunidade de alcançar a vydia (conhecimento de Brahman).16 Krishna, entretanto, está ali para ser aniquilado. Ou melhor, nem se pode falar propriamente numa aniquilação, pois não pode cessar aquilo que jamais começou a ser.17 Não há nada além de Brahman. O supremo bem (niḥśreyasa) consiste nessa realização, e todo o resto é obstáculo/condicionamento (upādhi) ou meio de realização (upāya).
Em outras palavras, a quintessência de Krishna é a transparência de seu não-ser-Krishna. Sua natureza fundamental é vydia.
Creio que nenhum vedantino ficaria profundamente insatisfeito com essa breve exposição.
O ponto de vista cristão é bastante diferente, pois não podemos dizer que a natureza humana de Cristo possui um caráter mais ou menos acidental, e menos ainda que ela consiste na avydia. Do ponto de vista cristão, a criação18 não é a mera ignorância acerca de Deus, mas uma doação de amor e um convite à participação na glória do Senhor.19 À primeira vista isso parece apenas uma formulação diferente, que em essência se identifica com a posição vedantina; mas olhando mais de perto nós percebemos que, ao reduzirmos a criação a um mero jogo de véus, eliminamos o propósito amoroso do Criador. Se a criação não passa de māyā, i.e. um engano acerca da natureza fundamental das coisas, o Criador é apenas o princípio do engano20. E se o bem supremo é a eliminação desse engano, seria melhor que ele nunca tivesse se originado.
Alguém poderia me responder, “mas se ele nunca tivesse se originado não existiríamos e não poderíamos fruir da realização suprema!”. O problema é que, do ponto de vista aqui assumido, não há nenhum existente buscando a realização, pois tudo isso é parte do engano: aquele que busca, a busca e o buscado; a cessação e a origem; o ser e o não-ser. Só há o Brahman, e nada mais. Mas pensemos seriamente: se a cessação do engano é a cessação de um ser distinto de Brahman, e se o Brahman é independente do engano, que diferença faria, então, se o engano jamais tivesse se originado? “Ele nunca se originou”, me responde então o interlocutor. Ora, mas se fosse assim não precisaríamos buscar a vydia. O problema é incontornável.21
Com isso eu não quero afirmar que a condição criatural não envolva a incompreensão da natureza divina. É claro que essa incompreensão faz parte dela. O ponto é que não podemos tomar essa incompreensão como razão suficiente da criação sem descaracterizar o Cristianismo.22 O mesmo acontece se, pensando como um adwaitin, reduzirmos todas as distinções a um princípio absolutamente não-qualificado (Brahman nirguna). O Cristianismo pode (e deve) afirmar uma natureza divina incompreensível e incondicionada, mas não pode fazê-lo reduzindo toda relacionalidade a uma unidade sem distinções. Do contrário, se reduziria as distinções das três hypostases à physis divina e se negaria a Santíssima Trindade.
O tratamento cristão da relação entre unidade e multiplicidade é muito mais nuançado que o dos adwaitins. Sem essas nuances a Teologia Trinitária perde o seu sentido. Isso, além do mais, faz do monoteísmo cristão algo muito diferente dos demais monoteísmos. Apesar de afirmarmos uma natureza divina una e incondicionada, nós não a concebemos como uma realidade isolada de quaisquer relações reais. Não há, para nós, uma natureza divina separada das distinções hypostáticas, nem podem essas distinções ser reduzidas à unidade da Essência que elas compartilham igualmente. É por isso que o monoteísmo cristão é um Triunitarismo.
Sei que a afirmação simultânea da absoluta unidade divina e das três hypostases pode ser escandalosa para muitos “metafísicos”, mas essa antinomia apenas implica que o Mistério Trinitário transcende a inteligência humana. Isso, ademais, sequer deveria ser um problema para quem busca um conhecimento supra-racional.23
A coisa se complexifica formidavelmente quando consideramos o fato de que uma das três hypostases divinas é consubstancial à natureza humana. Isso implica uma relação pessoal entre Deus e a criação, diferente daquelas que outras tradições podem afirmar. O Cristianismo professa um único Jesus Cristo, consubstancial ao Pai pela natureza divina e consubstancial aos homens pela Sua natureza humana. Não podemos dizer, como no caso de Krishna, que a quintessência de Jesus Cristo é Sua transparência em não-ser-Jesus. Pois o Jesus Cristo separado de Sua natureza humana não é o Jesus Cristo que professamos. Essa separação24 das naturezas é o erro nestorianista condenado pelo Concílio de Éfeso no quinto século.
Tal consideração nos leva a tratar de um outro ponto mencionado pelo Bruno. Ele comenta:
Lembro de ter escutado de um cristão ortodoxo perenialista a seguinte ideia: ele dizia acreditar em absolutamente tudo o que a Igreja professa. Ao mesmo tempo, também acreditava que a encarnação de Cristo não nega, por si, encarnações anteriores da exata Segunda Pessoa da Trindade - e ele se referia justamente às encarnações de Vishnu, mencionando, como linha de raciocínio, a passagem bíblica em que Jesus menciona ter "muitas outras ovelhas que não são deste aprisco".
O cristão perenialista mencionado pelo Bruno é James Cutsinger, um discípulo de Frithjof Schuon. O Bruno me enviou um vídeo do Cutsinger em que ele fala essas coisas. A dificuldade da posição do Cutsinger consiste precisamente no fato de que ele acaba caindo no erro nestoriano referido há pouco, e esse é o motivo pelo qual praticamente nenhum dos ortodoxos que conheço reconhece nessas posições a ortodoxia. Sou obrigado a concordar com eles.25
A Cristologia de James Cutsinger
Para colocar as afirmações do Cutsinger em contexto, convém citar um trecho de seu artigo O Mistério das Duas Naturezas. Ao tratar da natureza humana de Jesus Cristo o autor observa:
De acordo com várias autoridades Cristãs dos primeiros séculos, especialmente aquelas associadas à escola de Alexandria, a natureza humana do Filho deve ser considerada genericamente, e não de modo específico, pois não foi a particularidade histórica de um homem individual, mas a essência humana enquanto tal, que foi assumida por Deus quando “o Verbo se fez carne” (Jo 1:14). A humanidade de Jesus era, nesse sentido, impessoal ou “anhypostática” —ou talvez “enhypostática”, para usar a linguagem técnica de Leôncio de Bizâncio, que preferia dizer que, enquanto Jesus não possuía uma hypostasis humana individual, Sua humanidade participava da hypostasis do Filho Divino de Deus. De qualquer modo, embora o Cristo participasse inteiramente de todos os aspectos de nossa physis ou natureza, excluído unicamente o pecado, Ele era diferente de nós por não possuir uma personalidade humana, ou uma agência substancial, enquanto tal. O que Ele era, era a um só tempo humano e Divino, mas quem Ele era, era o Logos — Sua Pessoa não era outra que a segunda Pessoa eterna da Trindade, que existiu desde antes da fundação do mundo. Supor o contrário, isto é, pensar que a Divindade se projetou de alguma maneira em um ser humano independente, que de outro modo não seria excepcional, chamado Jesus, é também uma heresia — a heresia do adocionismo ou monarquismo dinâmico.26
Esse trecho é interessante por conter muitas afirmações verdadeiras, porém deslocadas de seu sentido tradicional. O cito aqui porque ele é o plano de fundo das afirmações que Cutsinger faz no vídeo. Dividirei o parágrafo em cinco seções, para facilitar sua abordagem.
Na primeira seção ele diz que “a natureza humana do Filho deve ser considerada genericamente, e não de modo específico, pois não foi a particularidade histórica de um homem individual, mas a essência humana enquanto tal, que foi assumida por Deus”.
De fato, a natureza assumida por Deus não foi meramente particular, pois “natureza” não é um ente particular, e, sim, uma essência (no sentido Peripatético da palavra). Nisso todos os Padres concordam. O problema é que não existe, senão na Arte Divina, uma essência real e subsistente separada de qualquer ente particular.27 Assim, dizer que Deus assumiu uma natureza humana é também dizer que Ele assumiu um particular. Do contrário, ou Ele teria assumido um ente de razão (e nesse caso a encarnação seria uma fantasia), ou então teria assumido a essência humana tal como subsiste universalmente na Arte Divina — mas isto seria afirmar que Ele assumiu o que nunca deixou de possuir, e nesse caso a encarnação seria um flatus vocis, pois além de não possuir qualquer implicação histórica, não seria a assunção da carne. A solução para o problema é simples: Deus assumiu a natureza universal no particular. Pois, como diz o próprio Leôncio de Bizâncio, mencionado como autoridade pelo Cutsinger, “é impossível encontrar um indivíduo humano que tenha uma essência diferente da do homem em geral”28.
Na segunda seção ele afirma que “a humanidade de Jesus era, nesse sentido, impessoal ou “anhypostática” —ou talvez “enhypostática”, para usar a linguagem técnica de Leôncio de Bizâncio, que preferia dizer que, enquanto Jesus não possuía uma hypostasis humana individual, Sua humanidade participava da hypostasis do Filho Divino de Deus”.
Novamente, trata-se de uma verdade parcial. O caráter “enhypostático” da natureza humana, tal como afirmado por Leôncio de Bizâncio, não implica a negação da individualidade de Jesus Cristo, mas apenas o fato de que não existem duas hypostases nEle: a hypostasis da natureza humana não é outra que a hypostasis da natureza divina. Ou seja, Jesus Cristo, humano e Divino, é uma única Pessoa. Leôncio de Bizâncio fez essa distinção justamente para combater os erros de Nestório e Êutiques, pois “um separa as naturezas em hypostases, enquanto o outro mistura as naturezas numa só”29.
A natureza humana de Cristo não é, segundo os Padres, uma natureza impessoal. Ela é pessoal justamente porque sua pessoalidade não é outra que a da natureza divina. É por isso que, contrariando Cutsinger, Leôncio de Bizâncio afirma categoricamente que “jamais poderia haver, pois, uma natureza anhypostática”30.
Aliás, não deixa de ser cômico o fato de que o autor bizantino começa um de seus mais famosos escritos da seguinte maneira:
Objeção do Acéfalo: “Quando o Verbo assumiu a natureza humana, Ele a assumiu de maneira genérica ou individualmente?”
Resposta do Ortodoxo: “Por que o perguntas? Achas que uma coisa difere da outra?”31
Sinceramente, não me parece que o Cutsinger tenha lido esse autor. Creio que ele tenha se informado a respeito da posição de Leôncio apenas por fontes secundárias. Enfim, vejamos o que mais ele disse no parágrafo citado.
Na terceira seção ele afirma que o Cristo “era diferente de nós por não possuir uma personalidade humana, ou uma agência substancial, enquanto tal”.
Como foi dito mais acima, o Cristo possui, sim, uma pessoalidade, mas ela não é meramente humana — como também não é apenas Divina. O fato de Sua natureza humana não possuir uma hypostasis separada da hypostasis divina não a torna “anhypostática”, como já foi dito. Ademais, negar a Jesus Cristo uma agência substancial da Sua parte humana é negar as Suas duas vontades — é a velha heresia monotelista.
Na quarta seção ele diz que “o que Ele era, era a um só tempo humano e Divino, mas quem Ele era, era o Logos — Sua Pessoa não era outra que a segunda Pessoa eterna da Trindade, que existiu desde antes da fundação do mundo”.
O que Cutsinger está dizendo, em suma, é que Cristo é humano e divino, mas isso não é quem Ele é. O “quem” do Nosso Senhor — Sua hypostasis — não é humano, portanto, segundo ele. Ele reduz, assim, a hypostasis de Cristo à natureza divina. Acontece que isso é precisamente negar que Deus se fez homem. Afinal, se a hypostasis de Cristo é apenas divina, o que então se tornou humano? A natureza divina mesma? Mas isso seria a transformação de uma natureza na outra, o que negaria a imutabilidade da natureza divina, caindo assim na heresia do teomorfismo.32 Enfim, essa é uma posição metafisicamente insustentável.
Evidentemente a natureza divina tem precedência ontológica sobre a natureza humana, pois a primeira é eterna enquanto a segunda é temporal. Por esse motivo, quando atribuímos a eternidade da hypostasis de Cristo à natureza divina, o fazemos de modo conveniente. Não podemos, contudo, confundir a hypostasis com a natureza divina ou excluir dela a natureza humana, como Cutsinger está fazendo aqui. A hypostasis de Cristo tem duas naturezas, e nesse sentido ela não pode ser reduzida a uma ou à outra sem que se crie uma cisão no Nosso Senhor.33
Na quinta seção, Cutsinger diz que “supor o contrário” do que ele afirmou até aqui implica “pensar que a Divindade se projetou de alguma maneira em um ser humano independente, que de outro modo não seria excepcional, chamado Jesus”, e que tudo isso é “a heresia do adocionismo ou monarquismo dinâmico”.
Essa é a parte mais maluca de todo o parágrafo, pois negar as confusões que ele fez mais acima não obriga ninguém a adotar (no pun intended) a posição adocionista. O adocionismo implica a negação da eternidade do Cristo e a afirmação de uma natureza humana hypostaticamente separada da divindade, que se diviniza posteriormente. Ora, o afirmado aqui foi, ao contrário, a eternidade de Cristo pela Sua natureza divina e a união das duas naturezas por Sua única hypostasis — pois Jesus Cristo, desde o ventre da Santíssima Virgem, nunca foi outro que o Filho de Deus.34
É perfeitamente possível afirmar tais coisas e ao mesmo tempo rejeitar in limine essa “encarnação” genérica e impessoal operada por uma hypostasis não-humana que se confunde com a physis divina, proposta por Cutsinger.
Agora podemos tratar propriamente do que foi dito no vídeo referido mais acima.
As Dificuldades da Abordagem Metaconfessional
Cutsinger afirma que a Segunda Pessoa da Trindade pode, em outras tradições, “estar presente de um modo igualmente pessoal, como em Krishna e outros avatāras hindus”.
Já vimos que, do ponto de vista hindu, o caráter avatárico de Krishna difere significativamente da noção cristã da encarnação. A afirmação de Cutsinger, portanto, só tem sentido se nos colocarmos num ponto de vista metaconfessional. E podemos fazer esse salto de três formas: 1) tentando preservar o entendimento que cada tradição tem de si mesma, mas conciliando-as numa síntese superior; 2) reduzindo indevidamente uma tradição aos esquemas da outra; ou 3) reduzindo ambas a um terceiro esquema, que, além de trair as duas, não as concilia verdadeiramente. Tentemos proceder da primeira forma, assumindo a possibilidade dessa conciliação ser impossível.35
Em primeiro lugar, a fim de não trairmos o entendimento que o Cristianismo tem de si mesmo, teríamos de afirmar que Krishna e Jesus Cristo são a mesma pessoa. Mas também teríamos de afirmar que são a mesma pessoa Jesus Cristo e os outros avatāras hindus. A dificuldade mais imediata que encontramos está em lidar com alguns avatāras que, diferentemente de Krishna, não se manifestaram em forma humana: alguns, como Matsya e Varaha, possuíam forma animal; outros, como a mangueira36 de Dandakaranya, forma vegetal. Fica claro que nesses casos não se pode falar propriamente em encarnação, pois não houve aí a assunção de uma natureza humana. Mas nada exclui, em princípio, que essas figuras tenham sido manifestações divinas de algum outro tipo. No caso de Krishna e outras manifestações humanas, contudo, a questão é um pouco menos problemática. Ainda assim, a metafísica hindu nos obrigará a fazer a distinção entre a manifestação (vibhava) e o Princípio, em si mesmo não-manifestado (avyakta) e sem forma (arūpa). Que sentido faria, então, identificar esses avatāras à Realidade Última? A identificação entre Krishna e Brahman, do ponto de vista metafísico, não faz mais sentido que a identificação entre Brahman e uma pedra. A diferença verdadeiramente significativa entre esses dois casos estaria apenas na intensidade da comunicação dos atributos de Brahman para um sujeito cognoscente.37 De fato, para nós, a pedra os comunica menos intensamente que Krishna, pois podemos tomar Krishna como guru, mas creio que a pedra não nos ajudaria muito.38
O único jeito de vencer essas dificuldades, a meu ver, é descaracterizando uma das tradições. Pois, ou colocamos de lado a diferença entre o Princípio enquanto tal e as infinitas manifestações dele — e assim descaracterizamos o Hinduísmo —, ou criamos uma cisão na Pessoa de Jesus Cristo, reduzindo-o a uma de Suas naturezas — descaracterizando, assim, o Cristianismo.
E mesmo que nos rendêssemos às tentações da tirania confessional (coisa que, já disse aqui, não quero fazer), tentando “cristianizar” Krishna, enfrentaríamos as seguintes dificuldades: 1) se a natureza humana é assumida integralmente pelo Verbo numa instância concreta, e se ela subsiste na mesma hypostasis que Sua natureza divina, a alma e o corpo de Krishna teriam de ser idênticos à alma e ao corpo de Jesus Cristo — nesse caso, teríamos de explicar a possibilidade de um mesmo corpo e alma nascerem múltiplas vezes em um mesmo mundo, o que acabaria justificando por tabela as doutrinas reencarnacionistas; e 2) se a natureza humana de Cristo é, não apenas genericamente39, a mesma dos outros avatāras humanos, o Verbo não a recebeu da Santíssima Virgem, mas de nascimentos anteriores. Aqui eu menciono duas, mas não é preciso muito esforço para encontrar outras dificuldades semelhantes.
Assim vemos que é muito difícil sustentar a posição de Cutsinger de uma das duas primeiras formas de abordagem metaconfessional. Também fica demonstrado que o próprio Cutsinger só a sustenta da terceira forma, pois, ao descaracterizar a cristologia ortodoxa e, ao mesmo tempo, tentar “cristianizar” Krishna, ele trai o entendimento que cada uma das tradições tem de si mesma, reduzindo-as a um terceiro esquema — a religio perennis schuoniana — que não resolve de maneira alguma o problema inicial40.
É claro que o que foi dito aqui não coloca um ponto final na questão da possibilidade de uma conciliação entre as tradições cristã e hindu. Creio, contudo, ter demonstrado as diferenças entre as duas tradições, as imensas dificuldades de abordá-las desde um ponto de vista metaconfessional e a impossibilidade de conciliá-las nos termos propostos por James Cutsinger.
Aliás, recomendo a todos que acompanhem também a newsletter do Bruno.
Infelizmente a brevidade é inimiga da clareza.
A palavra avatāra deriva de ava (abaixo) e tī' (cruzar), e significa literalmente um descenso.
Noel Sheth, Hindu Avatara and Christian Incarnation: A Comparison, em "Philosophy East and West", Volume 52, No 1, janeiro de 2002, p. 99.
Deve-se considerar que, nesse caso particular, Vishnu não está sendo considerado meramente como um dos devas do trimūrti (ternário que representa aspectos de Buddhi), mas como Princípio Supremo.
Segundo os Samkhyas (seguidores de Kapila), Prakriti é o princípio de todas as produções, a matriz não-manifestada (avyakta) de todas as mutações. A diferença entre as abordagens dos Samkhyas e dos Vedantinos é digna de nota: enquanto os primeiros colocam Prakriti como princípio e causa fundamental de toda a manifestação, os últimos a colocam como uma instância inferior.
F. Otto Schrader, Introduction to the Pañcaratra and the Ahirbudhnya Samhita, Madras: Adyar Library, 1916, pp. 47-48.
A prática do darshan se fundamenta sobre esse aspecto avatárico das formas sagradas.
Ibid., p. 49.
O que podemos chamar aqui de tirania confessional. É interessante observar que essa tirania tende a descaracterizar ambas as tradições comparadas, pois, ao incorporarmos indevidamente um esquema estranho à nossa tradição, assimilamos também — e inadvertidamente — tendências incompatíveis com o seu organismo próprio. Estas podem ser chamadas de tendências subversivas, pois, mesmo permanecendo latentes, elas ameaçam a integridade da nova tensão na qual foram inseridas. Sobre esse tema, que pertence à Teoria Geral das Tensões, veja-se meu artigo Egregores, Principalities and the General Theory of Tensions, publicado no Symbolic World Website em junho de 2023.
Faço isso por dois motivos: 1) porque, de fato, esse é o ponto de vista mais elevado da tradição; e 2) porque os diálogos entre Krishna e Arjuna, em sua maior parte, se referem a esse ponto de vista.
Os cito em particular aqui, pois a formulação que se segue parece trair a posição de outros vedantinos (como, por exemplo, a de Ramanuja).
Isto é, do ponto de vista paramarthika.
Embora outros vedantinos rejeitem essa absoluta redutibilidade das “qualificações” ao Brahman nirguna, eles concordarão que, do ponto de vista metafísico, essa diferença é irrelevante.
Ponto de vista vyavaharika.
É exatamente esse o papel que Krishna desempenha no Bhagavad-Gita.
Ibn Arabi diz algo semelhante em seu Tratado da Unidade (Risālat al‐Ahadīyah).
A menciono porque a natureza humana é parte dela.
Santo Irineu dizia que “a glória de Deus é a vida do homem”.
O maior dos enganadores, alguém diria.
E quem me conhece sabe que não digo essas coisas em espírito de polêmica. A verdade é que esse problema da origem da avydia é causa de intermináveis discussões entre os próprios vedantinos.
Sei que muitos verão nessa afirmação uma confirmação da idéia de que tal descaracterização é necessária para uma abordagem metafísica mais completa. Isso nos levaria a uma outra discussão muito mais complexa que, infelizmente, exigiria um espaço muito maior que o do presente artigo. O que posso adiantar é o seguinte: tal idéia já pressupõe certa tirania confessional, pois uma tal descaraterização implicaria a negação de elementos centrais à religião cristã.
Aqueles que travam nessa parte ainda pensam como homens carnais, no sentido apostólico da palavra.
Não se deve confundir a separação das naturezas com a distinção delas. A separação é indevida, ao passo que a distinção é real.
O que não quer dizer que o Cutsinger pessoalmente esteja fora da Igreja. Só Deus sabe isso aí, pois só Ele pode julgar o que há no coração do autor. O fato é que essas posições são heterodoxas.
James S. Cutsinger, The Mystery of the Two Natures, em “Every Branch in Me: Essays on the Meaning of Man”, Ed. Barry McDonald, Bloomington: World Wisdom, 2002, p. 94.
E antes que alguém me acuse de “nominalismo”, peço que considerem com mais atenção o que acabei de dizer.
Leontius of Byzantium, Contra Nestorianos et Eutychianos, em “Leontius of Byzantium Complete Works”, Ed. Brian E. Daley, Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 153.
Ibid., p. 131.
Ibid., p. 135.
Leontius of Byzantium, Epilyseis, em “Leontius of Byzantium Complete Works”, Ed. Brian E. Daley, Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 271.
Veja-se St. Cyril of Alexandria, Three Christological Treatises, Washington: The Catholic University of America Press, 2014, p. 44.
O próprio Leôncio de Bizâncio, em seu já citado Contra Nestorianos et Eutychianos, reproduz exaustivamente trechos de livros, homilias e cartas de diversos Padres da Igreja que atestam a unidade de Cristo nos termos em que a defendo aqui. Recomendo a leitura.
Foi por não compreender esse ponto que Nestório rejeitou o título mariano de Theotokos. O mestre de Cutsinger caiu no mesmo erro, aliás. Veja-se Frithjof Schuon, Roots of the Human Condition, Bloomington: World Wisdom, 1991, p. 38.
Pelo simples fato de que negar essa possibilidade seria, ao menos de minha parte, desonestidade intelectual.
Curiosamente, essa planta é considerada um avatāra primário por algumas autoridades. Veja-se Sri P. B. Annangaracharya, Tattvatraya, Kancheepuram: Granthamala Office, 1970, p. 66.
Repare que estamos falando já de um Brahman qualificado (Brahman saguna).
A não ser — alguém argumentaria — que fôssemos um Ramana Maharshi. Nesse caso, o que nos impede de dizer que o monte Arunachala foi um avatāra especialmente designado para ele?
Pois genericamente ela é a mesma de todos nós.
Além de levantar inúmeros outros (alguns dos quais eu expus em meu texto Apofatismo e Teandria).
Leo, finalmente venho comentar com mais calma. A demora tem um motivo nobre: no dia 16/12, nasceu meu segundo filho (seu xará, aliás). Você pode imaginar como esses últimos dias têm sido corridos, especialmente porque falo de um bebê que troca o dia pela noite.
Mas passando ao texto: como havia adiantado, é uma resposta muito melhor do que eu poderia imaginar. Sua capacidade de pesquisa é exemplar. Fico aqui com a convicção de que muitos desses seus textos mereceriam publicação em formato de livro.
Quero reforçar um ponto, tocado por você em seu texto anterior, e que merece, a meu ver, ser novamente salientado: Jesus Cristo tem traços humanos gritantes, que se opõem, em muito, às "encarnações" (avataras) hindus, repletas de elementos muito mais fantasiosos - mesmo se pensarmos em Buda, admitindo-o como "encarnação" de Vishnu, a narrativa envolve palácio real, riqueza extrema etc., algo tão diferente do nazareno pobre, carpinteiro etc. É curioso que, no Oriente, mesmo as narrativas sobre um homem "comum" como Lao Tsé trazem elementos muito mais fantasiosas do que os do Evangelho
Enfim, voltando a falar de eventual publicação, imagino que o interesse vá muito para além dos círculos relativamente estreitos daqueles que se interessam por autores perenialistas. Lembro que, há não muito tempo, visitando um mosteiro jesuíta, deparei com um quadro que retratava Jesus Cristo ao centro e, ao redor, símbolos de uma série de religiões (Islã, Taoismo, Budismo, Judaísmo, Hinduísmo etc.: uma cruz, uma roda de Samsara, uma flor de lótus e assim por diante). Lembro que, na época, o que me veio à mente foi justamente: eis aí a teologia do Cutsinger em forma de quadro. Na verdade, pensando melhor agora, me parece ser muito mais um sincretismo religioso grosseiro do que algo que expressasse a sofisticação perenialista. Num ambiente jesuíta, reforço. Enfim: são tempos confusos, e seus textos ajudam a encontrar a linha fina entre, de um lado, sincretismos menos ou mais sofisticados, e, de outro, a demonização pura e simples das outras religiões.