Tenho por objetivo nesta sequência de artigos expor, da maneira mais precisa e rigorosa que me for possível, o pensamento daquele que segundo Huston Smith é o mais importante pensador religioso do século XX. O plano é fazer com o pensamento de Frithjof Schuon o mesmo que fiz com o de René Guénon no artigo que você pode ler aqui.
Antes de mais nada, faço uma advertência ao leitor: não estou aqui, nem no papel de schuoniano, nem no de anti-schuoniano, mas no de um simples expositor. Não quero com esse gesto exibir uma indiferença fingida com relação às coisas que nosso autor escreveu. É impossível ser indiferente nessas questões. E também não vejo problemas em dizer que minhas opiniões contrastam com as do autor em muitos pontos — fato que, por outro lado, jamais me impediu de admirá-lo pela sua grandeza. O ponto é o seguinte: por enquanto, num ato de infinita gentileza para com o restante da humanidade, guardarei minhas opiniões apenas para mim mesmo e para uns poucos amigos próximos.
O Homem, a Gnose e a Metafísica Integral
Quando se fala em Frithjof Schuon, a primeira coisa que nos vem à mente é a tese da Unidade Transcendente das Religiões. Muito se tem falado disso por aí — e falarei disso também por aqui —, mas me parece mais interessante abordar sua obra por outros lados. Os motivos dessa mudança de abordagem tornar-se-ão evidentes ao longo da exposição.
Schuon nos diz que “a prerrogativa do estado humano constitui a objetividade cujo conteúdo essencial é o Absoluto”.1 Essa objetividade, que não deve ser entendida em sentido pós-cartesiano, é a capacidade humana de conhecer, buscar e amar2 o Real tal como ele é. Tal capacidade, que decorre da tríplice natureza do homem, é maximamente evidente no caso da inteligência, pois é da natureza desta o discernimento entre o Real e o ilusório, entre o Essencial e o acidental, entre Âtma e Mâyâ.
Levada às últimas consequências, nossa capacidade natural de objetividade coincide com o próprio Absoluto, pois quem diz objetividade diz também Totalidade.3 E isto é assim, porque nenhum conhecimento parcial é capaz de saciar-nos a sede pela Verdade. Todo conhecimento parcial, por definição, tem de excluir algo de si próprio. E, sendo por natureza limitado, o conhecimento parcial é outro que o ilimitado. Em outras palavras, apenas um conhecimento ilimitado pode aplacar a sede humana que nasce da nossa objetividade natural; e a união com o Absoluto é nada menos que sua consumação.
Também, em um gesto que nos faz lembrar do Proslogium de Santo Anselmo, nosso autor nos diz que essa capacidade humana, naturalmente sobrenatural,4 de conceber o Absoluto é prova suficiente da Sua realidade. Mais ainda: a natureza teomórfica do homem afirma, a um só tempo, a realidade de Deus, a imortalidade da alma e uma ligação possível — uma religio — entre Deus e o homem.5 Não se chega, porém, à perfeição desta religio sem uma abordagem propriamente esotérica. Segundo Schuon, a raison d'être do esoterismo é conduzir o homem, através de operações interiores, a essa “objetividade pura” que não é outra que a realização da Verdade Total.
O autor é bastante enfático ao falar das diferenças entre os dois tipos de conhecimento, que ele denomina conhecimento racional e Conhecimento do Coração. O primeiro, segundo ele, é indireto, mental e baseado na analogia; enquanto o segundo é direto, intelectual e baseado na identidade entre conhecedor e conhecido.6 A distinção é basicamente a mesma feita anteriormente por Guénon, entre o conhecimento teórico, ou discursivo, e a intuição intelectual.7
Tomo aqui a liberdade de, seguindo Algis Uzdavinys,8 associar essa distinção àquela consolidada pelos platônicos entre dianoia e nous. O conhecimento pelo nous (noesis) é a intelecção direta das realidades supra-formais; o conhecimento dianoético, por outro lado, é discursivo e formal — é aquele dos geômetras e dos que se ocupam da atividade especulativa. É daí que vem a distinção schuoniana entre filosofia e metafísica. A primeira, segundo ele, se baseia no conhecimento indireto e dianoético; enquanto a segunda se baseia na pura intelecção.9
O Conhecimento do Coração é aquele da Gnose, e o esoterismo designa esse conhecimento na medida em que ele é subjacente às várias doutrinas religiosas. Esse conhecimento cardíaco da Verdade Total, fundamento e origem de todas as doutrinas tradicionais, pode também ser chamado de Metafísica Integral. Fica evidente que nesse sentido a metafísica não é uma “doutrina”, mas o fundamento mesmo — o esoterismo sapiencial — de todas as doutrinas. Ainda assim, Schuon buscou explicitar a seu modo esse fundamento metafísico supra-confessional. E é dessa explicitação schuoniana da Metafísica Integral que falarei em seguida.
Dimensões, Modos e Graus da Realidade Divina
Podemos ver a obra de Schuon como uma tentativa de expressar a metafísica enquanto tal, na medida em que isso pode ser feito sem que se assuma um ponto de vista confessional exclusivo.10
O ponto de partida dessa metafísica deve ser o Real, a “objetividade pura”. Essa Realidade Suprema apresenta, em sua natureza, dimensões, modos e graus.11
A intelecção dessas dimensões surge da distinção principial entre Absoluto e Infinito. A Realidade Suprema é absoluta, pois não há outra senão ela; e ela é também infinita, pois nada pode limitá-la em seu estado puramente incondicionado. Pode-se notar que as noções de Absoluto e Infinito se implicam reciprocamente, pois o que é ilimitado exclui, ipso facto, qualquer alteridade que se lhe possa contrapor. Contudo, a noção de Absoluto apresenta a Realidade Suprema sob seu aspecto excludente, contrativo e masculino; enquanto a noção de Infinito a apresenta sob seu aspecto inclusivo, expansivo e feminino. Há, ainda, um terceiro aspecto que pode ser visto como a harmonização desses dois: é a Perfeição. A Perfeição se refere à ausência absoluta de carência ou privação, e, portanto, à Plenitude da natureza divina. A Realidade Suprema é Perfeição porque ela é o Sumo Bem.
Absolutez do Real, Infinitude do Possível e Perfeição do Bem: estas são as três dimensões da Ordem Divina. Trata-se do ternário jalāl (Majestade), jamāl (Beleza) e kamāl (Perfeição) do Sufismo.12 Deve-se ter sempre em mente, porém, que essas três dimensões são aspectos de uma Realidade Una.
Em seguida podemos falar em três modos dessa mesma Realidade. Eles são Sabedoria, Potência e Bondade. E cada um deles é, por sua vez, Absoluto, Infinito e Perfeito. A Sabedoria é a própria Omnisciência, que não pode estar ausente da divindade sem que se negue dela alguma perfeição, ferindo assim o ternário anterior; a Potência, isto é, a capacidade de determinação, também está implicada no ternário anterior, visto que negá-la seria negar também a Possibilidade Total enquanto tal; e a Bondade decorre da Perfeição e de sua tendência comunicativa e expansiva, pois, como diz Santo Agostinho, “é da natureza do bem o comunicar-se”.
A tendência expansiva do Real como que o projeta para fora de si mesmo, por assim dizer, e daí surge o mistério do véu (hijab), ou da Mâyâ Universal. É o mistério pelo qual o Real se manifesta velando-se e se oculta a fim de se revelar. É dessa projeção velada que surgem os graus da Ordem Divina. Esses graus formam também um ternário: o Supra-Ser (ou Princípio-Essência), o Ser Puro (ou Princípio-Pessoa) e o Logos (ou Princípio-Demiurgo).13
A projeção do Real decorre primariamente de seu aspecto de Infinitude, idêntico à Rahman (Misericórdia), que é a prefiguração divina da Mâyâ cósmica. Nessa projeção o Real torna-se, por assim dizer, dual: Ele assume a condição de um Sujeito divino que contempla sua própria Perfeição enquanto Objeto divino. Essa distinção entre Sujeito e Objeto divinos se reflete na relação entre Supra-Ser e Ser Puro. O primeiro é o Real enquanto sujeito, como que distanciado de si mesmo para poder contemplar e se doar a um Outro; o segundo é o Real enquanto objeto, que, no ato mesmo pelo qual se distanciou de si próprio para ser contemplado, sofreu a primeira determinação. Essa determinação primeira, ao limitar o Real-Objeto, fez do Ser Puro um “absoluto relativo”, ou um “não-manifestado relativo”.14 A distinção entre Supra-Ser e Ser, ademais, corresponde à distinção islâmica entre os níveis da Essência Divina (dhāt) e dos Atributos (ṣifāt).
Há, portanto, entre o Supra-Ser e o Ser a mediação da própria infinitude do Real, que é como que um sopro misericordioso (an-nafas ar-rahmani), uma dilatação interior à Ordem Divina.15 Essa dilatação atravessa o próprio Ser, fazendo-o também projetar-se num Outro. A luz da infinitude, ao atravessar o plano de refração do Ser, gera Prakriti, e o ato pelo qual o Ser a determina é, por sua vez, uma refração do aspecto Absoluto do Supra-Ser: Purusha. A ação de Purusha sobre Prakriti gera então Buddhi, o Intelecto Universal, que Schuon identifica ao Logos. A mesma emanação ocorre em seguida no nível do Logos, e os aspectos ativo e passivo se refletem então, respectivamente, como o Trimūrti (ou a Ordem Arcangélica da tradição islâmica) e suas shaktis Sarasvatī-Lakshmī-Pārvatī (ou simplesmente a “Substância Cósmica”). Daí se desdobra todo o cosmo, nessa cadeia de emanações triádicas, com seus múltiplos ciclos e ritmos, numa graciosa alternância entre o velamento e a revelação.16
Macrocosmo e Metacosmo
Para dar uma imagem ainda mais ampla das ordens cósmica e metacósmica, cabe falar dos cinco graus da realidade contidos no Princípio. Trata-se da doutrina das Cinco Presenças Divinas (khams al-Hadharât al-ilâhiyah).17
Há dois graus metacósmicos e três cósmicos. Em ordem descendente, os graus metacósmicos são o Supra-Ser e o Ser, correspondendo, respectivamente, à “Ipseidade” (Hâhût, de Hua, “Ele”) e ao “Reino da Divindade” (Lâhût) — e também à Unidade (Ahadiyah) e à Unicidade (Wahidiyah) divinas.18
Os três graus cósmicos são, em primeiro lugar, a manifestação supra-formal ou angélica (al-jabarût) no centro da qual está o Intelecto Universal (al-aql),19 que é o “Coração do Macrocosmo”; em segundo lugar vem o estado sutil ou anímico (al-malakût), o mundo dos djinns; e por último vem o estado material ou grosseiro (al-nâsût, ou al-mulk), que é aquele da modalidade corpórea.20
A Relatividade — e quem diz relatividade diz Mâyâ — abarca quatro dos cinco graus, a saber: os graus do Ser, do mundo angélico, do mundo anímico e do mundo grosseiro. Se, portanto, dividirmos o Universo Total em Âtma e Mâyâ, apenas o grau do Supra-Ser fará parte da primeira categoria, e todos os outros constituirão o domínio de Mâyâ.
Schuon nos apresenta ainda três grandes domínios nos quais os cinco graus podem ser divididos. A soma desses três domínios forma o Universo Total:
“A totalidade dos estados corpóreo e anímico forma o domínio ‘natural’, aquele da ‘natureza’; a totalidade desses dois estados e da manifestação supra-formal constitui o domínio cósmico; a totalidade do domínio cósmico e do Ser é, como vimos, o domínio da Relatividade, da Mâyâ; e todos os domínios considerados juntamente com o Supremo Si constituem o Universo total em seu sentido mais elevado.”21
A Existência, ou o macrocosmo tomado como um todo, pode ainda ser dividida nas manifestações formal e supra-formal. Podemos chamar a manifestação formal de Terra e a supra-formal de Céu. Teremos, por um lado, o macrocosmo como Céu e Terra; e, por outro, o metacosmo como Supra-Ser e Ser: o Universo Total fica, então, divido no quaternário Supra-Ser, Ser, Céu e Terra (pode-se, contudo, incluir os dois graus metacósmicos na dimensão “celeste” do binário cósmico a fim de se obter uma divisão ainda mais sintética do Universo Total).22
Schuon ainda faz uma série de associações muito elegantes entre os graus da realidade e alguns conceitos da tradição islâmica. A título de exemplo, mencionarei algumas delas: ele nos diz que a manifestação supra-formal corresponde ao Trono Divino (‘arsh), enquanto o estado sutil corresponde ao escabelo (kursî) sobre o qual “os Pés de Deus” repousam. Os pés simbolizam, nesse caso, a manifestação do Rigor e da Misericórdia. É no estado sutil que essas duas Qualidades começam a se diferenciar, pois no grau do Trono elas ainda estão harmonizadas num estado beatífico. A atuação dos quatro arcanjos sobre a substância cósmica, ao refletir-se no mundo anímico, dá origem a tamas, a tendência cósmica de queda e subversão: trata-se da ambiguidade demiúrgica.23 Daí que Lúcifer (Iblīs) seja descrito como um djinn pelos muçulmanos. Schuon também diz que o Cálamo divino (Qalam) e a Tábua (Lawh) sobre a qual Deus escreve todas as coisas se encontram no grau do Ser, pois os instrumentos de que o Princípio se usa para determinar o cosmo têm de ser, forçosamente, metacósmicos. Por razões práticas, não me estenderei mais nesse aspecto comparativo por ora.
Macrocosmo e Metacosmo têm seu ponto de encontro precisamente no grau do Ser, o qual participa ao mesmo tempo da Relatividade e da Ordem Divina. É assim que toda a Manifestação é “reintegrada” no Princípio e pode então participar do Absoluto; participação esta que não é outra coisa que a própria santidade.24 Falando sobre essa reintegração, Schuon diz o seguinte:
“Se isso é possível, o é em virtude da identidade metafísica entre Princípio e Manifestação — uma identidade certamente difícil de ser expressa, mas que é atestada por todos os esoterismos. Mâyâ ‘é’ — ou ‘não é outra que’ — Âtma; Samsâra ‘é’ Nirvâna ou Shûnya; al-khalq, ‘criação’, ‘é’ Al-Haqq, a “Verdade”, do contrário haveria uma realidade outra que Allah e ao lado dEle.”25
O Esoterismo e as Estações da Sabedoria
Convém falar agora das operações para a realização dessa identificação.
Vimos que o homem tem uma natureza tríplice: ele é dotado de inteligência, vontade e sensibilidade. A Verdade Total exige o homem total, por isso cada uma dessas partes deve participar a seu modo da via iniciática. É por isso que Schuon resume a vida espiritual em três palavras: meditação, concentração e oração. Em suas palavras:
“A meditação, do ponto de vista em que nos colocamos, é uma atividade da inteligência com vistas à compreensão de verdades universais. A concentração é uma atividade da vontade com vistas à assimilação existencial, por assim dizer, destas verdades ou realidades. A prece, enfim, é uma atividade da alma em face de Deus.”26
O esoterismo, contudo, se reduz a dois pontos: discernimento e união.27 E isso nos leva a uma nova consideração.
Podemos tratar da triplicidade de planos mencionada anteriormente segundo suas polarizações próprias. O plano da inteligência, ou do conhecimento, se polariza em discernimento e união; o plano da vontade se polariza em renúncia e ação; e o plano da sensibilidade, ou do amor, se polariza em paixão e fervor. Esse é o princípio da doutrina das seis estações da sabedoria.28
As seis estações podem ser divididas em três pares, cada par correspondendo a um dos três níveis da vida espiritual, a saber: os níveis exotérico, eso-exotérico29 e esotérico stricto sensu. O primeiro par, exotérico, contém as estações da renúncia e da ação; o segundo par, eso-exotérico, contém as estações da paixão e do fervor; e o último par, esotérico, contém as estações do discernimento e da união. A perfeição das estações superiores depende da perfeição das inferiores; não há saltos.30
A estação da renúncia, simbolizada por Saturno,31 é a do desapego da vida terrestre, é a morte para o mundo, a nox profunda; é a secura da vida no deserto,32 é o jejum e também a castidade (em todos os sentidos da palavra). Seu arquétipo divino é a Pureza. Seus vícios correspondentes são o apego, o amor descabido às criaturas, aos ídolos, a nós mesmos etc.
A estação da ação, simbolizada por Marte, é a do combate, da vigilância, da busca ativa. Seus arquétipos são a Onipotência e a Liberdade Divina. Seus vícios correspondentes são a acídia, a cólera — não a ira santa, mas a turbulência passional que é como que sua caricatura — e a fraqueza moral.
A estação da paixão, simbolizada por Júpiter, é a do contentamento, da quietude, da alma recolhida em si mesma. Seus arquétipos divinos são a Paz e a Bem-Aventurança (ānanda). Seus vícios correspondentes são a dissipação, a agitação interior, a exasperação etc.
A estação do fervor, simbolizada por Vênus, é a da fé confiante e caritativa, é o derretimento do coração no calor divino que impele o homem a doar-se a Deus a ao próximo. Seus arquétipos divinos são a Misericórdia, a Vida essencial e o Amor Infinito. Seus vícios correspondentes são a dureza de coração e o egoísmo.
A estação do discernimento, simbolizada pela Lua, é a da separação entre o Real e o ilusório, separação esta que, por assim dizer, aniquila a própria alma humana diante da Realidade Divina. Seu arquétipo divino é Deus enquanto Objeto Divino. Seu vício correspondente é a confusão entre Deus e seus reflexos na manifestação universal.
A estação da união, simbolizada pelo Sol, por fim, é a da Identificação entre o Objeto Divino e o sujeito que pode agora contemplá-Lo. Seu Arquétipo divino é a Subjetividade Divina mesma. Seu vício correspondente não é senão a mahâ-moha: a ilusão de um “eu” que se contrapõe ao Supremo Si (Ātma).33
O metafísico suíço faz ainda uma distinção entre esoterismo de facto e esoterismo de jure. Há, portanto, dois esoterismos.34
Pode-se falar, por exemplo, do Sufismo enquanto contraparte esotérica da forma exotérica islâmica, mas também se pode falar das verdades metafísicas intrínsecas ao Sufismo, independentemente de sua forma propriamente islâmica. Nesse caso, não se está mais a falar da forma tradicional islâmica, mas da natureza mesma da realidade. Essa dimensão quintessencial do Sufismo35 já não é mais um esoterismo contraposto a um determinado exoterismo, mas um esoterismo intrínseco e independente.
Nas palavras de Schuon:
“É necessário, portanto, fazer uma distinção — dizemos mais uma vez —, entre um esoterismo mais ou menos baseado em uma teologia particular e conectado às especulações que nos são oferecidas de facto por fontes tradicionais — é desnecessário dizer que essas doutrinas ou constatações podem ser de grande interesse — e um outro esoterismo nascido dos elementos verdadeiramente cruciais da religião e também, por essa mesma razão, da simples natureza das coisas; as duas dimensões podem se combinar, é verdade, e muito frequentemente elas são combinadas de fato.”36
Em seguida ele nos diz que “o esoterismo Cristão é de facto Clemente de Alexandria, Orígenes, Dionísio Areopagita, Mestre Eckhart, sem esquecermos de Boehme e sua escola; mas é também, e mesmo acima de tudo e de jure, as verdades universais — e suas atitudes correspondentes — que brotam dos fundamentos doutrinais, rituais e ‘fenomenológicos’ do Cristianismo”.37 O Adwaita-Vedanta de Shankara é, segundo ele, um caso de esoterismo que não se contrapõe a nenhuma forma exotérica enquanto seu esoterismo-complemento.
“Inquestionavelmente o Adwaita-Vedanta é um esoterismo intrínseco, e enquanto tal se basta a si mesmo.”38
Essa independência em relação a uma forma exotérica faz do Adwaita-Vedanta — ao contrário do Bhakti Vedanta de Ramanuja — uma expressão pura da Sophia Perennis. E é tendo em vista essa independência do esoterismo em relação às formas religiosas que Schuon nos diz o seguinte:
“A philosophia perennis39 é encontrada essencial e intrinsecamente na natureza das coisas enquanto a percebemos pela intuição intelectual; apenas formal e extrinsecamente ela é encontrada em um Texto revelado, em particular, e não pode jamais ser dependente dele.”40
Agora o tema da Unidade Transcendente das Religiões começa a adquirir seus contornos próprios na mente do leitor. Ele já pode antever a natureza da tese schuoniana através do quadro que acaba de ser pintado.
Essa preparação me parece imprescindível, pois é dentro desse quadro que Schuon pensa a vida espiritual, e é através dele que interpreta a natureza particular das várias religiões.
Frithjof Schuon, Esoterismo como Princípio e como Caminho, São Paulo: Pensamento, 1993, p. 09.
Esse ternário corresponde à tríplice natureza humana: o homem é inteligência, vontade e sensibilidade (ou simplesmente “alma”, no sentido islâmico de nafs). Falarei disso mais adiante.
Ibid., p. 09.
Pois, ainda que seja natural ao homem, ela transcende o próprio homem. É pelo Intelecto que o homem supera a relatividade do estado humano e ascende até a identificação com o próprio Sujeito Divino.
V. Light on the Ancient Worlds, Bloomington: World Wisdom, 2006, p. 119; e Esoterismo como Princípio e como Caminho, p. 24-25.
Aqui Schuon segue a máxima aristotélica que diz que “o intelecto em ato e o inteligível em ato são o mesmo”. Conhecer, assim, não é um ato de mera conformação entre mente e coisa, mas uma real transformação ontológica do sujeito cognoscente: “a alma é, de certo modo, tudo aquilo que ela conhece”, diz Aristóteles. Curiosamente, encontramos ecos dessa ideia aristotélica até mesmo em Heidegger, pra quem o ato de conhecer é também uma transformação ontológica do dasein.
V. meu artigo Uma Breve Introdução ao Pensamento de René Guénon.
Algis Uzdavinys, “An Approach to Philosophy, Theology and Metaphysics: Frithjof Schuon and Neoplatonic Tradition” em Dialogue and Universalism, 2003, 1/2, p. 140.
Pode-se notar que a distinção entre filosofia e metafísica, que era tão radical nas primeiras obras de Schuon, torna-se mais sutil nas suas obras de maturidade. Em seus últimos trabalhos Schuon admite que a verdadeira filosofia — aquela praticada por Platão, Aristóteles, Plotino etc. — não pode ser puramente dianoética. Ele reconhece, assim, que o fato dela se utilizar da dialética e da especulação como ferramentas não implica uma ausência de intelecção direta por parte dos filósofos. Afirmar o contrário, ademais, colocaria Schuon e Guénon numa situação desconfortável, pois a noção mesma de uma identidade entre intelecto e inteligível — noção da qual depende todo o edifício da metafísica integral — teve sua primeira e mais perfeita expressão na obra de Aristóteles, o qual era apenas um filósofo.
A tomada de um ponto de vista confessional particular impossibilitaria o projeto, por definição.
A exposição que se seguirá baseia-se principalmente — porém não unicamente — em Survey of Metaphysics and Esoterism, Bloomington: World Wisdom, 2000. A vantagem dessa edição é que ela contém dois livros de Frithjof Schuon num volume único: seu Résumé de Métaphysique Intégrale (1985) e seu Sur les Traces de la Religion Pérenne (1982). Essa edição da World Wisdom me foi emprestada por um grande amigo durante as semanas em que eu estava fazendo anotações, consultas e releituras para começar o presente texto. Isso facilitou bastante o meu trabalho, pois até então eu só tinha à disposição edições francesas dos dois textos separados — e eu preciso fazer bem menos força para ler em inglês do que em francês. Obrigado, Gabriel!
Podemos perceber uma analogia com a realidade da Paixão do Nosso Senhor, na qual, segundo São Tomás de Aquino, a Justiça e a Misericórdia se manifestaram em grau eminente e numa harmonia perfeita. Temos, assim, o ternário Justiça, Misericórdia e Consumação do Sacrifício do Cordeiro (a qual seria o termo unitivo, e a síntese dos anteriores). Schuon, por outro lado, associa esse ternário à Santíssima Trindade. Certamente existe uma analogia entre o ternário das “dimensões divinas” e a Santíssima Trindade, mas seria um erro grosseiro deduzir dessa analogia uma identidade.
O Supra-Ser de Schuon é idêntico ao Não-Ser guenoniano; o Ser Puro é um conceito comum a ambos, e se identifica ao Ishwara ou Brahman Saguna (o Brahman Qualificado) vedantino; e o Logos schuoniano se identifica ao Buddhi, mas aqui aparece, curiosamente, como um elemento presente na ordem metacósmica, e não mais como uma criatura no centro do cosmos. Essa é uma das ambiguidades da obra do metafísico suíço: ora o Logos é uma realidade metacósmica — portanto, um ente incriado —, ora é um ente do macrocosmo, inferior à Prakriti — portanto, uma criatura. Alguém diria que essa ambiguidade presente na obra de Schuon reflete, na verdade, uma ambiguidade do próprio Logos. Mas esse gesto, cá entre nós, apenas empurra a questão da divindade do Verbo pra debaixo do tapete.
Ele é não-manifestado em relação ao macrocosmo (ou samsâra), mas é manifestado em relação ao Princípio Incondicionado. Trata-se, portanto, de uma manifestação metacósmica.
É interessante comparar esse ponto com a descrição Plotiniana da geração da díada [δυάς]. Segue aqui um trechinho dela: "[...] em uma unidade não pode haver visão alguma (ora, em uma unidade pura não há espaço para visão ou para um objeto); em sua Contemplação, o Uno não está agindo como uma Unidade; pois se estivesse, o Princípio-Intelecto [νοῦς] não poderia ter sido gerado. O Princípio começou como uma Unidade, mas não permaneceu tal como começou; sendo Ele completamente desconhecido para si mesmo, tornou-se múltiplo; dilatou-se, por assim dizer, em embriaguez [Βεβαρημένος]: desejando a posse universal, lançou-se para fora, embora fosse melhor nunca ter conhecido o desejo pelo qual um Secundário surgiu..." (Enneads, III.8.8). O trecho, além de conter alusões ao mito de Poros e Pênia, d'O Banquete, tem forte ligação com os mistérios dionisianos: o esquartejamento de Dionísio cometido pelos Titãs simboliza precisamente essa ruptura da Unidade Primordial e a origem da multiplicidade (e quem diz origem da multiplicidade diz, de certo modo, origem da manifestação universal). A coisa fica ainda mais interessante quando comparamos isso tudo à narrativa do "sacrifício do Purusha", do Purusha Sukta (veja-se Rig Veda X.90, primeiro anuvaaka). Com isso, podemos entender um pouco melhor o que os Santos Padres queriam dizer quando falavam que Nosso Senhor Jesus Cristo estava a criar o mundo durante Sua Paixão. E o fato da Sua Paixão não ter sido apenas mais um símbolo do “herói sacrificado” também nos faz compreender que, de fato, um novo mundo foi criado ali (Ap 21:5).
Esse é o mistério de līlā (brincadeira, ou jogo), da tradição védica. Ele é também representado iconograficamente pela figura do pavão na imagem da deusa Sarasvatī. O fato da deusa portar uma vina — e de ser “deusa da música” — também alude a isso. Vemos uma expressão artística desse mesmo mistério na dança do leque, ou Senbu (扇舞), da tradição japonesa. É muito bonito de se ver uma performance dessas quando se tem consciência dessas dimensões simbólicas da arte.
É uma doutrina de origem Sufi. Para maiores detalhes, veja-se Form and Substance in the Religions, Bloomington: World Wisdom, 2002, p. 51-68.
Ou ainda, em termos Budistas, a Shûnya (Vacuidade) e Dharmakâya (O Corpo do Dharma).
Em diversas ocasiões Schuon identifica o Intelecto Universal (al-aql) ao Logos. Dito isto, espero que o leitor não fique desorientado ao encontrá-lo agora aqui, fora da ordem metacósmica. Veja as notas anteriores.
Com efeito, outras divisões são possíveis. É possível, por exemplo, falar em um domínio intermediário entre corpo e alma; ou entre alma e inteligência, e assim por diante. A doutrina “guenoniana” dos estados múltiplos do ser mostra que há uma multiplicidade indefinida de domínios, e que essas grandes divisões são apenas sínteses simbólicas. É verdade que Schuon não aceita completamente a versão guenoniana dessa doutrina, mas isso em nada afeta o que digo aqui.
Frithjof Schuon, Form and Substance in the Religions, Bloomington: World Wisdom, 2002, p. 54.
Sobre essa divisão entre Céu e Terra, e o quaternário Supra-Ser, Ser, Céu e Terra, veja-se Frithjof Schuon, Ter um Centro, trad. Mateus S. de Azevedo, São Paulo: Editora Polar, 2018, p. 170.
Sobre essa ambiguidade onto-cosmológica, veja-se Ter um Centro, p. 127-36.
Nesse sentido se pode dizer que o grau do Ser é aquele da Apokatastasis. Esse ponto de encontro também se assemelha muito àquilo que Plotino chamava de "Idade de Kronos", isto é, a presença de todas as Ideias em uma perfeita harmonia na imanência do Nous (por ele identificado a Kronos, ou Saturno). Um detalhe curioso é o fato de que a expressão "Satya-Yuga" (idade do ouro, ou da "pureza") também pode ser traduzida como "Idade de Saturno".
Frithjof Schuon, Form and Substance in the Religions, p. 53.
Frithjof Schuon, Ter um Centro, p. 169.
Schuon, falando sobre o Sufismo, nos diz que o Ihsān se identifica com o esoterismo: ele é crença correta e ação correta. Segundo ele, a quintessência da crença correta é a verdade metafísica (Haqīqah), e a da ação correta é a invocação do nome (Dhikr). Veja-se Sufism: Veil and Quintessence, Bloomington: World Wisdom, 2006, p. 101.
A presente exposição se baseia no capítulo final de Les Stations de la Sagesse, Paris: L’Harmattan, 2018.
Schuon denomina eso-exotéricas as tradições que, embora contenham elementos de esoterismo, dependem ainda de formas tradicionais próprias (como uma hagiografia particular, certas concepções antropomórficas acerca da divindade, e assim por diante). O Cristianismo e grande parte do próprio Sufismo são, para ele, eso-exotéricos. Pode-se fazer uma correspondência entre as três vias de união da tradição védica — a saber, o karma, o bhakti e o jñana— e os níveis exotérico, eso-exotérico e esotérico. O bhakti é esotérico em relação ao karma, mas não o é em relação ao jñana. Assim como o “esoterismo relativo” de bhakti supera as formas exteriores, o esoterismo stricto sensu do jñana supera até mesmo as formas interiores.
Schuon nos diz, a esse respeito, que “há bhakti sem jñana, mas não há jñana sem bhakti”.
Titus Burckhardt é quem sugere a analogia entre as estações, as seis fases do trabalho alquímico e os planetas que as simbolizam. Veja-se Titus Burckhardt, Alchemy: Science of the Cosmos, Science of the Soul, trad. William Stoddart, Baltimore: Penguin Books, 1972, p. 195.
Certa vez ouvi de um sacerdote espanhol uma observação muito interessante: é no deserto que a diferença entre o céu e a terra nos aparece com máxima evidência. O deserto, pela sua própria natureza, nos força a fazer essa distinção radical entre a aridez da vida terrestre e a imensidão da vida celeste.
Cabe observar a correspondência existente entre as duas últimas estações e os graus do Ser e do Supra-Ser. Se a perfeição da estação do discernimento é a realização do Ser, a perfeição da estação da união é a realização do Supra-Ser.
Veja-se Survey of Metaphysics and Esoterism, p. 115-21.
Sobre esse tema, veja-se Sufism: Veil and Quintessence, p. 101-24.
Frithjof Schuon, Survey of Metaphysics and Esoterism, p. 117.
Ibid., p. 117.
Ibid., p. 118.
Nosso autor usa mais ou menos indistintamente os termos sophia perennis e philosophia perennis. Em seus últimos trabalhos, contudo, ele passou a dar preferência aos termos sophia perennis e — sobretudo — religio perennis. A palavra philosophia passou a ser evitada por dar a entender que a Gnosis é uma espécie de elaboração mental. A expressão religio perennis pode também ser tomada num sentido mais restrito, significando então o aspecto operativo da sophia perennis.
Frithjof Schuon, Spiritual Perspectives & Human Facts, Bloomington: World Wisdom, 2007, p. 236.