Em minha Breve Introdução ao Pensamento de René Guénon falei um pouco sobre os estados múltiplos do ser, e sobre como a ciência simbólica se relaciona com essa doutrina. Creio poder ilustrar isso melhor na prática, aplicando o pensamento analógico “à maneira guenoniana” a um tema de minha preferência. Isso me parece um esforço que vale a pena, visto que a maneira como o simbolismo vem sendo concebido e aplicado, de modo geral, pelas pessoas que falam publicamente sobre o assunto — com notáveis exceções, é claro — é bastante diferente daquela que procuro aqui exemplificar. Guénon costumava jogar com símbolos. Esse jogo não consiste na mera comparação de uma coisa com outra, como quem diz, “tal coisa é lunar” ou “X é Y”, simplesmente colocando um símbolo ao lado de um simbolizado mais ou menos evidente, mas na combinação e comparação de símbolos diversos, que tem por finalidade precipitar no leitor a súbita intelecção de um simbolizado que não poderia encontrar melhor expressão do que a figura formada por essa composição simbólica mesma. Isso evidentemente não invalida outras abordagens, mas é necessário que essa distinção seja feita e que a ciência simbólica não seja reduzida às mais limitadas de suas possibilidades.
Decidi fazer algumas considerações sobre o simbolismo da arquearia no contexto cristão, pois é um tema bastante interessante e pouco explorado — e porque, é claro, acho isso legal pra caramba.
A Flecha e o Simbolismo Axial
O mote dessas considerações é uma passagem do livro do profeta Isaías, em que o Messias é comparado a uma flecha. Vejamos.
"Ilhas, ouvi-me; povos de longe, prestai atenção! O Senhor chamou-me desde meu nascimento; ainda no seio de minha mãe, ele pronunciou meu nome. Tornou minha boca semelhante a uma espada afiada, cobriu-me com a sombra de sua mão. Fez de mim uma flecha penetrante, guardou-me na sua aljava” (Is 49:1-2).
A flecha, como a lança, está associada ao simbolismo axial. Podemos, assim, vê-la como mais um símbolo do “Raio Celeste”, ou Buddhi enquanto penetra verticalmente os múltiplos graus da existência (veja-se René Guénon, Le Symbolisme de la Croix, c. XXIV). Há uma associação tradicional entre a flecha e a dissipação do caos pela ação de uma figura solar, o que acontece, por exemplo, no combate entre Apolo e Píton, a serpente que perseguira Leto quando esta ainda carregava Apolo em seu seio. Foi com um golpe de flecha que o terrível monstro foi derrotado. O combate ocorreu em Delfos, lugar onde se situa o omphalos (o “umbigo do mundo”). Vemos aí um encontro entre o simbolismo da flecha e o simbolismo do centro do mundo, o que pode ser compreendido facilmente, uma vez que a flecha representa o axis mundi, e este, enquanto corta verticalmente os diversos graus da manifestação, é o centro de cada um deles, como o eixo da esfera celeste é também o centro do equador celeste. Essa relação nos permite entender melhor a afinidade entre o simbolismo axial e o simbolismo solar; essa afinidade está indicada na figura mesma que na astrologia corresponde ao sol (☉). Podemos ver nela a representação do grande círculo de uma esfera cortada por um eixo vertical. Aquilo que desde a perspectiva bidimensional aparece como um centro é, desde a perspectiva tridimensional, um eixo.
Retornando ao combate entre Apolo e Píton, podemos dizer que ele corresponde à atividade do “Raio Celeste” sobre os múltiplos níveis da manifestação universal enquanto esta se dispõe a ele como mera potencialidade receptiva (e, portanto, como uma “terra sem forma”). Também podemos vê-lo como a dissipação da ignorância pela luz do intelecto, ou como a neutralização das tendências subversivas da alma humana pela ação do Espírito. Assim, temos esse combate como um símbolo da psychomachia (a guerra da alma) ou daquilo que a tradição islâmica chama de jihad al-nafs (a guerra contra a alma), sendo Apolo e suas flechas um símbolo do espírito (ar-ruh), e Píton, por sua vez, um símbolo da alma (an-nafs), ou melhor, de todas as tendências concupiscíveis e irascíveis do homem, na medida em que o movem para o que é vão e efêmero (sobre os sentidos da palavra nafs na tradição islâmica, Imam Al-Ghazali, Mukhtasar Iḥyā′ ‘Ulūm al-Dīn, Chipre, Spohr, 2014, p. 240-41).
O mesmo esquema está presente na tradição hindu na forma do combate entre Indra e Vritra. Indra derrota o dragão-serpente do caos com o Vajra, uma arma associada ao poder dos raios e frequentemente descrita como uma flecha divina. A palavra Vajra (वज्र) significa literalmente “diamante”, o que nos faz lembrar do mito de Er em Platão. No livro X da República vemos a descrição do “Eixo da Necessidade”: uma linha luminosa feita de diamante que atravessa o céu e a terra, e ao redor da qual todas as coisas se movem continuamente. Segundo a narrativa de Er, a cor desse eixo diamantino se assemelha à do arco-íris, o que é bastante notável, visto que na iconografia tradicional Indra dispara suas flechas diamantinas com o arco-íris (o qual é chamado indradhanus, ou “arco de Indra”). Isso também parece ter relação com o arco-íris esmeraldino em torno do Trono do Senhor nas visões de São João (Ap 4:3), com os anéis luminosos de arco-íris vistos por Düdjom Lingpa nas margens dos quatro oceanos de ambrosia da terra pura1 (Alan Wallace, Stilling the Mind, Boston, Wisdom Publications, 2011, p. 18), e com o conhecido fenômeno do rainbow body no Budismo. Segundo a narrativa cosmogônica Shinto, quando na terra só havia água e nada possuía forma definida, as divindades Izanagi e Izanami, estendendo desde o céu uma lança feita de pedras preciosas (o amenonuhoko), fizeram surgir do meio das águas uma ilha habitável. No centro dessa ilha as duas divindades ergueram um pilar — o qual é muitas vezes identificado à própria lança celeste —, e lá habitaram. Ambas giraram em torno desse pilar: a divindade masculina girou para a sua esquerda e a feminina, para a sua direita; e após um primeiro desencontro, os dois, frente a frente, apaixonaram-se e uniram-se um ao outro. Há aí uma relação evidente com o simbolismo do caduceu e do monte Meru, mas isso nos levaria a um outro assunto. Por ora, basta apontar essa relação.
Na tradição cristã essa atividade do Princípio sobre a pura potencialidade é descrita no Gênesis como um Fiat Lux (Gn 1:3). Não é necessário dizer que essa luz ordenadora que penetrou a criação, até então informe, corresponde à atividade mesma do Verbo. Mais do que isso: podemos dizer que essa luz é, de certo modo, o próprio Verbo, isto é, na medida em que Ele penetra a criação por inteiro. Assim voltamos à passagem de Isaías, e vemos que a associação feita entre o Cristo, o Verbo Encarnado, e a flecha não é nada fortuita. A começar pelo fato de essa atividade ordenadora do fiat lux ter como um de seus principais símbolos a carpintaria, ofício provavelmente exercido por Jesus Cristo. O simbolismo da carpintaria é especialmente importante, pois o carpinteiro é aquele que, possuindo as formas dos artefatos em sua arte, concebe um determinado projeto e então o imprime na madeira (em grego, hyle). Esse mesmo esquema é visto, por exemplo, na narrativa do Timeu: o Demiurgo é justamente aquele que molda a matéria (hyle), imprimindo nela as formas que nele subsistem imaterialmente, ou, para usar uma terminologia Cristã, que subsistem imaterialmente na “Arte Divina” (veja-se São Boaventura, Itinerário da Mente para Deus, III.3). É evidente, portanto, que também o combate entre Apolo e Píton é símbolo dessa atividade demiúrgica. E pela lei de correspondência entre os vários graus, estados e domínios da existência, podemos dizer que ele é símbolo de muitas outras coisas, como, por exemplo, o ofício artístico de modo geral: é com a flecha de sua arte que o escultor elimina do mármore tudo aquilo que se opõe à forma final de sua obra — as “potências pitônicas” do mármore —, e é de modo semelhante que o músico esculpe o silêncio, o “dragão” que protege o ouro das harmonias ainda não-manifestadas. Eu mesmo, enquanto aqui escrevo, busco dar uma forma bem acabada para uma multidão ainda “caótica” de pensamentos, sem que minha intenção geral, a qual é determinada pelas coisas que pude inteligir com clareza, seja traída durante o processo. Nós normalmente não pensamos na mesma ordem em que expomos um assunto. De maneira geral, pensamos uma série de coisas ao mesmo tempo, sem que tenhamos para cada um desses pensamentos as palavras que melhor lhes correspondem. O ofício do escritor é, assim, uma pequena luta contra Píton, e a caneta é sua flecha áurea. A relação simbólica entre a flecha e a caneta, ou Qalam, é também muito interessante, mas isso nos levaria longe demais.
O simbolismo da flecha tem papel particularmente importante em muitas tradições indígenas. A origem da tribo norte-americana Hidatsa é descrita pelos Awatixa, um dos três subgrupos Hidatsa, como uma descida da aldeia celeste ao mundo terrestre. A figura responsável por trazer os homens para a terra, Alapooshish, assumia a forma de uma flecha quando descia de sua morada celeste. Para a tradição dos Hidatsa a flecha é um objeto sagrado, e há inclusive uma identificação ritual entre um modelo específico de flecha e o próprio Alapooshish. Os guerreiros que portam essas flechas creem que, de algum modo, ele está presente nelas. Esse modelo, chamado imudumite, é feito segundo especificações muito rigorosas. Na parte de trás da flecha há uma pena de águia dividida em duas metades, e enrolada em espiral. Esta pena é “a asa da flecha” e o poder dos raios é associado a ela. Isso evidentemente está relacionado ao Pássaro-do-Trovão (Thunderbird), o qual tem poder sobre os raios e é muitas vezes identificado ao próprio Alapooshish (Gilbert L. Wilson, Uses of Plants by the Hidatsas of the Northern Plains, Londres, University of Nebraska Press, 2014, p. 341-42). Essa associação entre a flecha e o raio já apareceu aqui antes, quando falávamos do Vajra. Segundo Heráclito de Éfeso, “o raio é aquilo que orienta o curso de todas as coisas” (Fr. 64).
Os índios Cheyenne também associam a flecha ao Pássaro-do-Trovão, e acreditam que, caso a arte da fabricação de flechas seja perdida, o próprio pássaro a ensinará novamente à tribo. Eles também têm a flecha como objeto sagrado, e ela inclusive é colocada como oferta no “altar” central do local de celebração da Dança do Sol. As flechas são colocadas sobre um ninho feito de gravetos, que representa o ninho do Pássaro-do-Trovão, junto com outras ofertas. Esse rito, que é realizado anualmente, tem por finalidade a renovação e a cura de toda a criação; e às próprias flechas é atribuído, por extensão, um poder curativo (Roland Bohr, Gifts from the Thunder Beings, Londres, University of Nebraska Press, 2014, p. 185). Uma tradição semelhante existe também entre os índios Crow (Robert H. Lowie, The Religion of the Crow Indians, Nova Iorque, Order of Trustees, 1922, p. 391). Os índios Mandan, que também usam flechas imudumite, têm o curioso costume de cobrir parte do arco com pele de cobra, e isso está associado ao mito do Grande Pássaro, que narra o combate entre as serpentes marinhas e os pássaros-do-trovão — o que nos remete, mais uma vez, ao combate entre Apolo e Píton. É evidente que, nesse caso, o arco simboliza as potências inferiores, e a flecha imudumite, por sua vez, as potências superiores. Arcos com revestimento de pele de cobra são encontrados também entre os Hidatsa, Oglala e Crows (Roland Bohr, op. cit., p. 197-98). Embora, segundo a tradição, os pássaros-do-trovão e as serpentes marinhas estejam em guerra perpetuamente, estas últimas criaturas também são associadas à medicina, o que de certa forma justifica a associação entre elas e o arco (Ibid., p. 198-99). O arco retesado na medida correta, contendo a flecha por inteiro, é símbolo da conciliação das naturezas inferior e superior, da paz entre as serpentes e os pássaros, da harmonia universalis que é também cura universal — disse o mestre Kenzo Awa: “quando estiramos a corda ao máximo, o arco abarca o universo” (Eugen Herrigel, A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, São Paulo, Pensamento, 2015, p. 36). Convém dizer algumas palavras sobre a relação entre a arquearia e o simbolismo medicinal.
Flechas Medicinais
Apolo é, por um lado, o “líder das musas” (Μουσηγέτη), e por outro, o pai de Asclépio. Ele é, portanto, para os gregos, o deus da música e da medicina. A associação dessas duas artes é bastante evidente: a finalidade (τέλος) da medicina é a saúde do homem, e esta não é senão a harmonia entre os elementos opostos que, em seu corpo ou em sua alma, encontram-se em desequilíbrio. Essa harmonia que reconcilia as oposições entre os elementos no organismo psicofísico do homem é precisamente aquilo que Boécio chamou de musica humana (De Institutione Musica, II.1). Se a lira de Apolo representa seu patronato sobre a arte da música, seu arco e suas flechas representam seu patronato sobre a medicina. Isso nos causa certa estranheza, e a ideia mesma de flechas terem poder curativo parece um contrassenso. Heráclito, com um belo jogo de palavras, nos evidencia essa ironia dizendo que “o arco (βιός) é chamado de vida (βίος), mas sua obra é a morte” (Fr. 48), porém ele também nos diz que “os homens não sabem como aquilo que está em desacordo concorda consigo mesmo”, e que essa concórdia “é a harmonia (ἁρμονίη) das tensões opostas, como a do arco e da lira” (Fr. 51). Existe, portanto, uma relação entre o retesamento do arco, necessário para que o tiro seja perfeito, e a tensão necessária das cordas para que a lira esteja bem afinada. Em ambos os casos uma harmonia entre forças opostas é necessária. Assim, temos um nexo analógico que liga o arco à lira, e ambos à musica mundana. Lemos também no sutta de Sona que Buddha Shakyamuni usa a afinação das cordas de uma vina para explicar a justa medida do Caminho do Meio (Anguttara Nikaya 6.55). Ora, o homem que conformou sua vida ao Caminho do Meio é um homem verdadeiramente são; é como um arco retesado na medida de conter a flecha por inteiro. E se entendemos que a flecha não é outra coisa que Buddhi, ou a projeção de Atmâ sobre as águas primordiais (Brahma Purana c. I), podemos dizer que um tal homem está no centro desse plano de reflexão: a “roda do Dharma”, ou a cruz traçada no plano horizontal. A esse respeito Lao Tzu nos diz que “os trinta raios se unem no centro da roda, mas é no vazio (wu) do eixo que está a razão do seu uso (yung)” (Tao Te Ching, c. XI); e São Máximo Confessor, por sua vez, diz que “assim como no centro do círculo existe um ponto único onde todos os raios ainda estão reunidos, aquele que foi julgado digno de chegar a Deus, nele conhece, com um conhecimento direto e sem conceitos, todas as essências das coisas criadas” (Olivier Clément, Fontes: os Místicos Cristãos dos Primeiros Séculos, Juíz de Fora, Edições Subíaco, 2003, p. 207). Guénon nos lembra de que no simbolismo védico é Agni que representa a “faísca divina” que se manifesta no centro da swastika (Symbolism of the Cross, Nova Iorque, Sophia Perennis et Universalis, 1996, p. 107), e, segundo nos informa Ananda Coomaraswamy, Agni é também “a ponta da flecha divina (anika)” e, portanto, “a parte essencial dessa flecha que não se desvia, e com a qual os deuses feriram o dragão no começo; e também é virtualmente a flecha inteira, visto que ‘para onde vai a ponta vai a flecha inteira’ (Satapatha Brahmana II.3.3.10, II.5.3.2, II.5.4.3.8; Aitareya Brahmana I.25 etc.)” (What is Civilization?, Great Barrington, Lindisfarne Press, 1989, p. 150).
Como foi dito mais acima, podemos ver na destruição de Píton — ou de figuras análogas, como os dragões enfrentados por Indra, São Jorge e Santa Marta — um símbolo do afastamento das pragas, doenças e tendências corruptivas do corpo e da alma, nos níveis individual e social. Isso tem relação com a própria vara de Asclépio, símbolo medicinal que representa, entre outras coisas, a atividade do “Raio Celeste” sobre as tendências subversivas da natureza — incluindo aqui, evidentemente, as tendências subversivas da própria natureza humana. Estas são, com efeito, o grande dragão contra o qual guerreiam continuamente os ascetas de todas as grandes religiões, munidos das flechas do discernimento. Podemos ver, nas seguintes palavras do Sheikh Darqawi, o tema da psychomachia encontrando-se com o do simbolismo medicinal:
“[...] outro irmão me disse: ‘como se pode curar a alma (nafs)?’ Respondi: ‘esquece-a e não te lembres dela em absoluto, pois quem não esquece sua alma não se recorda de Deus’” (Sheikh Al-‘Arabi ad-Darqawi, Cartas de um Mestre Sufi, São Paulo, Editora Bismillah, 2021, p. 20).
A tradição hindu também associa o simbolismo da arquearia à saúde. Um dos hinos védicos, dirigido ao Céu e à Terra — os “pais da flecha” —, diz:
“Tu, ó Corda de Arco, curva-te à nossa volta: torna-te como uma pedra. Afasta, com tua firmeza, as malignidades e as coisas odiosas” (Atharva Veda I.2.2).
Aqui, a harmonia entre o Céu e a Terra é comparada à tensão da corda do arco, e ambos à saúde corporal — com efeito, trata-se de uma prece contra a disenteria.
Essa associação existe também no Cristianismo, especialmente na figura de São Sebastião. Antes de falar sobre ele, creio ser interessante falar um pouco sobre a prática da arquearia na tradição cristã. Essa arte subsistia nas guildas da Europa medieval, e de modo especial em Flandres. A Guilda de São Sebastião, fundada provavelmente no século XIV, era composta por homens extremamente nobres e piedosos que viam na arte um modo de consagração. Sua piedade pode ser exemplificada por um curioso trato que os arqueiros de Bruges tinham com os frades menores do mosteiro franciscano da cidade: em troca da segurança da região, eles exigiam dos frades a celebração de missas diárias na capela de São Sebastião que havia dentro do mosteiro, e, caso os frades perdessem um dia que fosse, teriam de pagar à guilda uma certa quantia em moedas de prata. Também era exigido que, nos dias de doze santos escolhidos especificamente pelos arqueiros — e certamente o dia de São Sebastião estava aqui incluído —, cinco frades cantassem uma missa especial (Laura Crombie, Archery and Crossbow Guilds in Medieval Flandres, Woodbridge, The Boydell Press, 2016, p. 102). Na modernidade, especialmente pós-revolução francesa, houve uma crescente separação entre a arte e a vida espiritual na guilda de Bruges — hoje em dia, por exemplo, pessoas de diferentes religiões, e mesmo ateístas, são admitidas como membros, e a maneira mesma de se conceber a arte da arquearia parece ter perdido seu caráter tradicional, sendo ela reduzida cada vez mais ao “esporte”. De qualquer modo, é certo que houve uma forma autenticamente cristã de se praticar a arte da arquearia, sob o patronato de São Sebastião.
São Sebastião foi um soldado romano condenado à morte por professar sua religião e rejeitar os deuses romanos, dizendo ao próprio imperador que eles não passavam de demônios. O santo sofreu como que dois martírios: primeiro foi atingido por dezenas de flechas e foi deixado agonizando, no entanto, de forma miraculosa, sobreviveu e voltou a pregar o Evangelho publicamente; os romanos então resolveram espancá-lo até a morte, e em seguida, após terem se certificado de que o santo realmente havia morrido, atiraram seu corpo no esgoto de Roma (Anna Brownell Jameson, Sacred and Legendary Art, Vol. II, Londres, Longmans, Green, & Co., 1883, p. 412-14). A associação entre o santo e a arte da arquearia é bem óbvia, mas o que não é tão óbvio é sua associação à cura e ao afastamento das pestes. Lemos na inscrição de um mosaico do século VII presente na Igreja San Pietro in Vincoli: “A São Sebastião, o Mártir, aquele que dissipa a pestilência” (Ibid., p. 414-15). Era comum na Idade Média pedir a intercessão do santo para que uma epidemia fosse afastada da cidade. Esse simbolismo medicinal da arquearia pode ser melhor compreendido, no contexto cristão, se considerarmos algumas passagens das Escrituras.
Feridas de Amor
Assim diz o profeta Jeremias:
“[O Senhor] retesou o arco e me tomou para alvo de suas setas. Cravou em meus rins as flechas de sua aljava” (Lm 3:12-13).
E Jó, durante sua dura provação, assim nos diz:
“As setas do Todo-poderoso estão cravadas em mim e meu espírito bebe o veneno delas. Os terrores de Deus me assediam” (Jó 6:4); “Eu estava em paz. Ele, de repente, me esmagou. Segurou-me pela nuca e me pôs em pedaços. Tomou-me como seu alvo. Suas setas voam em volta de mim. Ele rasga os meus rins sem piedade, espalhando o meu fel por terra” (Jó 16:12-13).
O profeta também havia dito, em suas Lamentações, que ele próprio conheceu a dor, sob a vara do furor divino (Lm 3:1). O simbolismo da vara é aparentado ao da lança, do cetro e da flecha, na medida em que todos eles são imagens do “Eixo da Necessidade”. Porém, a vara se diferencia especificamente em seu simbolismo enquanto significa a atividade corretiva, ou retificadora de Deus sobre os homens, pois é com a vara que o pai corrige seu filho: “quem poupa a vara odeia seu filho; quem o ama, castiga-o na hora precisa” (Pr 13:24); “a loucura apega-se ao coração da criança; a vara da disciplina a afastará dela” (Pr 22:15). O simbolismo da vara está, portanto, associado, a um só tempo, à pedagogia e à medicina. As flechas que atingem os rins do profeta Jeremias são parte desse processo pedagógico e têm de ser consideradas dentro desse quadro.
Os rins são a parte inferior do nosso ser, e também a sede dos nossos desejos, apegos e paixões — por vezes também simbolizam a imaginação, de modo geral. A Palavra de Deus rasga impiedosamente os rins daqueles que a escutam, e espalha por terra o fel e a podridão que havia lá dentro. Mas como podem essas flechas ser venenosas se elas são justamente aquilo que elimina o nosso fel? E como pode o espírito do homem se nutrir do veneno dessas flechas? Não é sensato crer que uma ação divina tenha efeito maligno: esse veneno só pode ser um remédio. Do ponto de vista de alguém que está identificado à própria doença, porém, todo remédio eficaz é um veneno —"pois o que é o 'espírito do homem' senão o espírito do orgulho?” (São Gregório Magno, Morals on the Book of Job, Vol. I, Londres, Oxford, 1844, p. 367).
São Gregório Magno, comentando a primeira passagem do livro de Jó, nos diz:
“[...] 'do veneno das flechas bebe o espírito' dos justos, pois os decretos do alto, ao ferir, operam uma mudança no Eleito que até então se encontrava em pecado; de modo que a alma, sendo traspassada, deixa sua dureza de coração, e o sangue da confissão escorre da ferida que traz a saúde” (Ibid., p. 368).
O sangue da confissão que escorre da ferida causada pelas flechas medicinais do Senhor é como a flor que brota do cajado de Arão (Nm 17:8) e as rosas que brotam do sangue de Cristo após seu coração ser traspassado pela lança de Longino (veja-se René Guénon, Fundamental Symbols, Oxford, Quinta Essentia, 1995, p. 20), e uma vez que o cajado de Arão é, segundo os Padres da Igreja, uma “figura” da própria Santíssima Virgem — pois ela concebeu sem a necessidade de contato com nenhum elemento de ordem terrena, como o cajado floresceu sem precisar de raízes na terra —, o justo ferido pelas flechas divinas também o é, pois esse sangue da confissão que jorra de sua chaga não tem na terra sua origem. E o é por ainda outro motivo:
“Simeão abençoou-os e disse a Maria, sua mãe: ‘Eis que este menino está destinado a ser uma causa de queda e de soerguimento para muitos homens em Israel, e a ser um sinal que provocará contradições, a fim de serem revelados os pensamentos de muitos corações. E uma espada transpassará a tua alma’” (Lc 2:34-35).
Essa espada que fere a alma da Virgem Santíssima é, segundo São Bernardo, o próprio Amor de Cristo, que a penetra inteiramente, em cada fibra de seu seio virginal: “ela, em verdade, sofreu em todo o seu ser uma grande e deliciosa chaga de amor” (Sermons on the Canticle of Canticles, Vol. I, Waterford, Browne and Nolan Ltd., 1920, p. 346-47). E é desta mesma chaga que a alma reclama quando diz “estou ferida de amor” (Ct 2:5). Santo Agostinho, comentando o Salmo 44, diz o seguinte:
“No Cântico dos Cânticos, a noiva geme: 'estou ferida de amor', com o que quer dizer que está apaixonada, inflamada de amor e suspirando por seu noivo, que a traspassou com as flechas de sua palavra” (Expositions of the Psalms, Vol. II, Nova Iorque, New City Press, 2000, p. 293).
As flechas do noivo têm um poder transformativo. Suas feridas transformam seus inimigos em amigos, o que é maximamente evidente no caso de Paulo, que, a caminho de Damasco, foi traspassado pela poderosa flecha do Amor de Cristo. Considerando essa maravilhosa realidade, Santo Agostinho exclama: “Quão afiada e potente não deve ter sido a flecha que derrubou o ferido Saul para então transformá-lo em Paulo!” (Ibid., loc. cit.). Segundo São Bernardo, podemos ainda dizer, quanto à Santíssima Virgem, que a flecha penetrante do Amor de Cristo a traspassou “no sentido de que passou por ela e assim veio a nós, a fim de que todos nós pudéssemos receber de sua plenitude, e de que ela pudesse se tornar a mãe da caridade (cujo Pai é Deus, a Caridade substancial), trazendo e estabelecendo seu Tabernáculo sob o sol” (Op. cit., p. 346). Não é da Igreja, a noiva de Cristo, que recebemos as graças desse Amor? A presença real do Cristo na liturgia é, ela mesma, a flecha do Amor Divino que, traspassando o Corpo Místico por inteiro, cria nele uma deliciosa chaga da qual torrentes de água viva jorram sem parar.
A Aljava do Senhor
A passagem de Isaías também diz que o Cristo, como uma flecha penetrante, foi guardado na aljava do Senhor. Isso pode ser entendido de muitas formas, e de fato muitas são as interpretações tradicionais dessa passagem. A forma mais evidente é ver na aljava o símbolo da própria potência receptiva que corresponde à atividade do Princípio. Em termos bíblicos, essa potência passiva pode ser entendida tanto como a Terra, quanto como a dupla Céu e Terra antes2 da determinação do fiat lux. O primeiro caso é mais facilmente compreensível, uma vez que a Terra, em sua relação com o Céu, é caracterizada justamente por uma passividade. No segundo caso, contudo, Céu e Terra significam respectivamente a natureza intelectual e a matéria corporal ainda não determinadas: o Empíreo enquanto domínio receptível às inteligências angélicas, e a natureza elemental enquanto domínio receptível às formas corpóreas (veja-se Santo Agostinho, De Genesi ad litteram, I.1.2; e Pedro Lombardo, Sententiae II, dist. 2, cap. 4-5). Nesse sentido, podemos falar em uma aljava celeste e uma aljava terrestre, ou de ambos como uma única aljava, uma vez que esses dois domínios são determinados pelo fiat lux. É nesse sentido que o Eixo da Necessidade, que é uma “linha luminosa, reta como um pilar”, “atravessa por inteiro o céu e a terra” (Platão, X República 616b). Assim, a flecha guardada na aljava celeste corresponde à sabedoria “criada antes de todas as coisas” (Eclo 1:4) como “espírito racional e inteligente da Tua Cidade Santa, ‘que está no alto, e é nossa mãe’3, e é ‘eterna no céu’4 (em qual céu senão no Céu dos céus5, o qual louva a Ti porque é o Céu dos céus do Senhor?)” (Santo Agostinho, Confessions, Washington, The Catholic University of America Press, 2008, p. 383). Santo Agostinho distingue essa sabedoria da Sabedoria incriada:
“[...] Trata-se de uma sabedoria criada, isto é, uma natureza intelectual que, por contemplar a Luz, também é luz; por isso, embora criada, é também chamada de sabedoria. Há, porém, uma grande diferença entre a luz que é fonte de iluminação e aquela que a recebe, e há uma diferença igualmente grande entre a sabedoria criadora e aquela que é criada” (Ibid., p. 382).
A aljava, nesse caso, corresponde à pura receptividade contemplativa, que caracteriza essa primeira criatura; e a flecha, por sua vez, corresponde à Luz contemplada — que aqui coincide com próprio Verbo. Desenvolvimentos desse tipo podem ser feitos em outras direções já apontadas aqui. Não é necessário que eu me estenda nesse ponto.
Há ainda outras possibilidades de correspondência, que seguem direções diferentes das anteriores. Podemos, por exemplo, encarar essa aljava como a própria Onisciência Divina, sendo então a flecha o Verbo Encarnado (essa é uma interpretação de São Cirilo de Alexandria). O conhecimento da realidade da Encarnação tem de ser para Deus um conhecimento atual desde a eternidade, caso contrário haveria em Deus uma passagem da ignorância para o conhecimento, o que implicaria a negação de sua Onisciência. A permanente atualidade desse conhecimento é, portanto, um modo pelo qual a flecha é guardada na aljava do Senhor.
Podemos também ver na aljava um símbolo do corpo do Cristo, no qual a flecha — agora tomada como sendo sua natureza divina — foi guardada; e esse é o próprio Mistério da Encarnação (essa é a interpretação de São Cromácio de Aquileia, São Jerônimo e tantos outros santos). Mas, uma vez que a expressão “corpo de Cristo” pode significar muitas coisas em planos diferentes, a aljava, como símbolo do corpo, encontra correspondência em cada um desses planos. Assim, a Igreja, como Corpo Místico de Cristo, é uma aljava para a flecha do Espírito Santo. O Pão Eucarístico, como o Corpo de Cristo que nos nutre para a vida eterna, é a aljava que guarda a flecha da nossa salvação. Maria, a Theotókos, a carne da qual o Verbo se revestiu para trazer a salvação ao mundo: Maria, ó piedosa, ó doce Virgem Santíssima, tu és a aljava que guarda a flecha da Divindade. Guarda-nos também contigo, nossa mãe!
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Em seu sentido mais profundo, a aljava é o Silêncio no qual o Verbo é eternamente gerado pelo Pai (veja-se Santo Inácio de Antioquia, Epistle to the Magnesians, viii— em The Apostolic Fathers, Londres, Macmillan & Co., 1907, p. 144-45). Diante desse mistério só nos resta silenciar humildemente.
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Por fim, convém falar sobre a relação que há entre a flecha e o ato de apontar para algo. É comum usarmos setas para simbolizar a relevância de um ponto para o qual a atenção de alguém deve se dirigir, como, por exemplo, quando desenhamos setas ao lado do parágrafo de um livro que estamos lendo. Temos, assim, uma relação analógica entre a flecha e o ato mesmo pelo qual um sinal ou símbolo qualquer aponta para seu referente. A flecha é, portanto, símbolo da simbolicidade enquanto tal. Podemos, assim, dizer que cada coisa aponta para seu princípio tal como uma flecha aponta para seu alvo. E como o ato pelo qual cada coisa se volta a seu princípio — e, em última instância, ao Princípio Supremo — é, de certa forma, um ato de louvor (consciente e deliberado ou não), podemos, assim, fazer uma aproximação entre o simbolismo da flecha e a realidade do louvor cósmico (Sl 148). Ora, cada coisa louva e aponta para o Princípio na medida em que é vestígio ou imagem dEle. E essa relação que as criaturas têm com o Princípio é analógica, isto é, se dá por meio de razões (logoi).
Na contemplação dos logoi de todas as coisas naturais consiste a physica theoria dos Padres gregos, a qual é parte do itinerário da mente para Deus, na medida em que é o “hábito de uma percepção religiosa que enriquece a alma com certa apreensão intuitiva de Deus, enquanto é refletido na criação” (Thomas Merton, Ascensão para a Verdade, Belo Horizonte, Editora Itatiaia Ltda., 1958, p. 29). Ora, “desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam visíveis à inteligência, por suas obras” (Rm 1:20), e é pelos logoi de todas as criaturas que a inteligência pode conhecer essas perfeições. Ainda assim, é o Logos, o Verbo coeterno com o Pai, que é propriamente “a imagem do Deus invisível” (Cl 1:15). O Logos é o princípio de todos os logoi; é o Purusha de cujos membros e fragmentos todas as coisas são feitas (Rig Veda X.90). Podemos dizer, com São Máximo Confessor, que “os múltiplos logoi são o Logos uno, aquele ao qual todas as coisas estão associadas e que existe em si mesmo sem confusão [ἀσύγχυτος], o Deus essencial e individualmente distinto, o Logos do Deus Pai” (On the Cosmic Mistery of Jesus Christ, Nova Iorque, St. Vladimir’s Seminary Press, 2003, p. 54); esse Logos, “cuja bondade se revela e se multiplica em todas as coisas que têm nele sua origem, com o grau de beleza apropriado a cada um dos seres, recapitula todas as coisas em si mesmo (Ef 1:10)” (Ibid., p. 55).
Dito isto, as inúmeras flechas que apontam para Deus — como as de Apolo, Indra e Alapooshish — não são senão imagens refletidas da “verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem” (Jo 1:9), aquele que é a um só tempo o centro e o eixo de todo o Real, aquele que diz: “O Senhor fez de mim uma flecha penetrante, guardou-me na sua aljava”.
Curiosamente, no centro dessa terra se encontra o trono de Samantabhadra, o “Diamante Nascido no Lago”.
Esse “antes” não é, evidentemente, um antes cronológico, mas uma anterioridade ontológica.
(Gl 4:26).
(2Cor 5:1).
(Sl 148:4).